Em 21 de Dezembro de 1926, a pequena comunidade portuguesa exilada na Espanha, sempre conduzida pelo infatigável D. António Coelho, pôde regressar a Portugal e foi instalar-se na Falperra, Braga. O «Sousa«, como lhe chamavam, entrou no Noviciado a 25 de Novembro de 1927, fez profissão simples monástica a 26 de Setembro de 1933, tendo como colega de profissão o Pe. Plácido de Carvalho, sacerdote da diocese do Porto e ex-pároco de Figueiró, que veio a ser seu antecessor no cargo abacial. A profissão solene fê-la em Singeverga a 21 de Março de 1933, recebendo o sacerdócio a 29 de Julho de 1934.
Secretário particular de D. António Coelho, colheu do mestre e pai espiritual um grande espírito de método e de trabalho com muito amor à Ordem Beneditina e serviço à Igreja de Jesus. Começou a escrever na «Opus Dei», no «Mensageiro de S. Bento» e lançou-se na pregação por freguesias e cidades. A comunidade era pequena e sem meios. Foi ele quem foi escolhido por D. Abade Plácido para tomar posse da Igreja do Mosteiro de S. Bento da Vitória, Porto, para os beneditinos, em 13 de Outubro de 1942. Aí, ele mesmo se encarregou de limpar por suas mãos a monumental igreja monástica, ao mesmo tempo que fomentava a piedade mariana da Congregação dos Filhos e Filhas de Maria, ali sediada, pregava e ajudava o então Cónego Valente na assistência espiritual à Juventude Universitária Católica.
No mosteiro de Singeverga, passou pelos cargos mais importantes da comunidade beneditina até ser eleito Abade, sem surpresa, em 1948. Recebeu solenemente a bênção abacial das mãos de D. António Silva a 2 de Janeiro de de 1949. Temperamento dócil e meigo, sabia afeiçoar-se aos seus monges, e a muitos deu formação como mestre de noviços ou de clérigos. Foi director das várias revistas publicadas pelo mosteiro: «Mensageiro de S. bento», «Liturgia», «Ora & Labora», Omnes Unum-Mensageiro de S. Bento». Governou a comunidade até 1966, durante 18 anos e 30 dias! A ele, ao seu entusiasmo e à onda de relações humanas que conseguiu reunir, se deve a construção do Mosteiro novo de Singeverga, em que se empenhou a fundo deste 1950 até à inauguração em 14 de Novembro de 1957. Querendo o bem da ordem e sonhando com a restauração da Congregação Beneditina Portuguesa, promoveu a abertura de casas monásticas em Lamego e Lisboa.
Talvez porque a sua capacidade intelectual lhe fazia ver as deficiências da sua formação que não tivera o privilégio de frequentar universidades abrindo-se ao saber no estrangeiro, tomou logo a peito mandar monges formar-se em Música, História, Sagrada Escritura, Liturgia, Direito, Missionologia, Pastoral. As Missões, de que os beneditinos de Singeverga se encarregaram no Leste de Angola, mereceram-lhe muito carinho e atenção; visitou-as longamente por cinco vezes e mantinha correspondência assídua com os monges missionários. O seu ideal missionário encontrava nestas visitas paternais às missões uma espécie de alívio e válvula de escape em relação aos cansaços e problemas surgidos no governo da casa-mãe. «Longa traxere martyria», repetia ele citando S. Bernardo. Espírito talvez demasiado sensível, registou com carinho na Crónica de Singeverga as palavras da tradição monástica com que o saudou o último prior seu na festa onomástica de 24 de Março de 1966: «Intus dolor, foris labor!»
Na modéstia da sua presença, sabia irradiar uma simpatia cativante para com as pessoas de fora que o contactavam, fossem oblatos ou amigos, e atendia muita gente que recorria aos seus préstimos sociais ou procurava apenas um bilhetinho de recomendação para emprego. Que o digam os patrões das fábricas das redondezas! O se natural humilde dava-lhe um quase instintivo e insinuante jeito para fazer pedidos. Criou à volta de Singeverga uma verdadeira coroa de amigos do mosteiro.
No meio de todos os trabalhos, ainda descobria tempo
para redigir e escrever à crónica de Singeverga
numa diacronia de 35 anos seguidos, desde 1931 a 1966. São
quatro notáveis volumes, com perfeitíssimos índices
remissivos por ele pacientemente elaborados, e, depois, preciosamente
encadernados. Não há dúvida, ele era a arca
da memória viva do Mosteiro de Singeverga e uma autêntica
enciclopédia da história beneditina em Portugal.
Percorreu numerosos arquivos à procura de documentação
que conseguiu pôr em fichas e deu-se ao trabalho de verdadeiro
paciência beneditina ao resumir em fichas todas as actas
capitulares do «Bezerro Nº 1» da antiga «Congregação
dos Monges Negros de S. Bento dos Reinos de Portugal» desde
a 1613. Também pôs em fichas todos os dados importantes
da «Crónica da Real, Antigo e Palatino Mosteiro de
Tibães», obra manuscrita de Dr. Marceliano da Ascenção,
em 1746. Para além disso, conseguiu fazer um bom e completo
dossier dos monges «egressos» a quando da expulsão
dos religiosos em 1834 e suas reuniões monásticas
em S. Bento da Vitória pelo S. Bento do Verão. Era
um atilado dilatelista com uma quase completa colecção
de selos portugueses e do vaticano, e um bibliófilo apaixonado
de antiguidades beneditinas!
«Era um gosto ouvi-lo...»
A sua grande capacidade intelectual e as suas profundas convicções religioso-monásticas prepararam-no e tornaram-no disponível para o ministério da palavra. Apesar da sua vozinha débil, e talvez por isso, conseguia atrair os ouvintes; depois, a elegância do estilo e os malabarismos quase abarrocados da linguagem, a graça do dizer, a vastidão da cultura bíblica e patrística, as indispensáveis citações latinas, a profundidade do pensamento, tudo isso fez dele um dos mais afamados e requisitados conferencistas portugueses para temas de espiritualidade, liturgia e história beneditina. Pregou duas vezes seguidas os exercícios espirituais ao Episcopado Português e fez muitos retiros a clero e seminaristas. Era um gosto ouvi-lo em sermões, retiros e recolecções, em que se mostrava um verdadeiro mestre espiritual. Baste dizer que, no porto, durante mais duma dezena de anos seguidos e até Dezembro passado, foi o director espiritual do retiro mensal dum grupo de sacerdotes, com a curiosidade de escrever à máquina todas as suas intervenções.
A Igreja em Portugal serviu-se muitas vezes dele.
Foi ele que organizou a CNIR (Confederação nacional
dos Institutos Religiosos) por indicação do Cardeal
Larraona, e dela foi o primeiro Presidente.
Autor e tradutor
Foi membro da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e da Academia Portuguesa de História. Sabia relacionar-se com a gente da cultura e tinha sempre conversas eruditas e graciosas, não se dispensando de contar anedotas cheias de espírito. Foi-lhe atribuída a medalha de Ouro do Concelho de Santo Tirso.
Após a resignação abacial, foi Secretário, durante vários anos, da Conferência Episcopal de Angola. Regressado à Metrópole, ajudou na pastoral da Paróquia do Bonfim, Porto, foi Capelão das Irmãs do Bom Pastor, Ermesinde e, durante dez anos, até Outubro passado, foi Capelão da Irmandade de S. Crispim, onde fundou o «Coro de S. Bento», atraindo juventude, prestando constante e devota assistência pastoral aos fiéis que o estimavam sem medida e mostrando uma solícita atenção pelos doentes, que visitava e aos quais administrava os Sacramentos. Nestes últimos anos, todos os dias pela manhã, muito cacheirinho, lá saía ele para a Capela de S. Crispim. E apesar de se lhe dizer para ir de táxi, ria-se, ia sempre de autocarro, e várias vezes regressou a pé. Há pouco tempo, dei-me conta de como gostava de ver o telejornal e apreciar uma transmissão de futebol. Afinal, este sacerdote tão espiritual, sabia bem que «Nihil humani a me alienum puto!».
Promoveu a espiritualidade e traduziu a vida do Servo de Deus, Guido de Fontgalland. Foi postulador das causas de Beatificação da Irmã Maria do Divino Coração, de Fr. Bernardo de Vasconcelos e do Pe. Américo do Gaiato. Esmerado conhecedor dos clássicos latinos e óptimo cultor do latim, como tal redigiu as actas desses processos para a Cúria Romana. Ele sozinho compunha e editava o boletim «Frei Bernardo, Boletim da causa do Servo de Deus», que, pontualmente, saía três vezes por ano, o nº 0 em Julho de 1982 até ao nº 42 e último em Dezembro de 1996.
Ajudou em vários serviços no Paço Episcopal do Porto e era Juiz do Tribunal da Cúria. Prestava ainda assistência espiritual a uma equipa de Casais de Nossa Senhora, e todos os meses se deslocava ao Instituto do Bom Pastor de Ermesinde para ouvir de confissão as religiosas.
Depois de restaurado o mosteiro de S. Bento da Vitória,
recolheu a esta cela monástica em Julho de 1990 e aqui
trabalhava intelectualmente, sem descanso. Tinha em mãos,
prestes a findar, a tradução da obra espanhola de
António Linage Conde sobre S. Bento, em sete volumes, de
que já foram publicados seis pela Irmandade de S. Bento
da Porta Aberta, Gerês. Estava também a concluir
uma monografia sobre a Paróquia do Santíssimo Sacramento,
Porto. De resto, D. Gabriel tem vários livros publicados:
«São Bento, Patriarca dos Monges e Pai da Europa»,
com duas edições (1980); «Mosteiro de singeverga.
Cem anos, 1892-1992 (1992); «Vida de S. Bento. II Livro dos
Diálogos de S. Gregório» (1993). Colaborou
com um extenso e eruditíssimo artigo sobre «Beneditinos»
no «Dicionário da História da Igreja em Portugal»,
II Volume, Lisboa, Edições Resistência, 1981,
39-407. Está em impressão um notável trabalho
sobre «Escritores beneditinos naturais do Porto» para
a exposição que brevemente comemorará os
400 anos da fundação do Mosteiro de S. Bento da
Vitória, Porto. De resto, são inúmeros os
seus artigos espalhados em revistas, boletins e jornais.
Muito ficou por fazer
Desde o Verão de 1996 começou a ser apoquentado com alguns achaques de falta de ar e sofreu o primeiro derrame cerebral, de que recuperou bem. Agora, depois de uns dias de internamento, desde 6 de Janeiro no Hospital de S. João, Porto, foi transferido no dia 10 para o Hospital do Carmo, caiu, este forte «cedro do Líbano» do monaquismo português na tarde de 23 de Janeiro de 1997, vencido por terceiro derrame cerebral. E se esta doença fatal, já no leito de morte, fez aparecer nele um certo nervosismo com reacções negativas face à alimentação e à estadia no leito, provou que, até ao fim, ainda o preocupava o muito que tinha de fazer. Não tinha tempo a perder: «Tenho de ir para a minha vida», dizia!
Terminamos fazendo nossas e adaptando as palavras com que, na Crónica de Singeverga, ele próprio se refere a Dom António Coelho: - «Se quiséssemos empregar aqui a frase banal dos necrológios, diríamos que, com a morte de (D. Gabriel de Sousa) a Ordem Beneditina perdeu um elemento de altíssimo valor. Não perdeu; talvez o tenha desperdiçado, (há trinta anos!), agora ganhou-o... como intercessor justo de Deus». Ele que advogou a causa de vários candidatos ao Reino dos Céus e à declaração oficial de santidade da Igreja, ele que tanto gostava de repetir «Peregrinamur a Domino» e «Conversatio nostra in caelis west», certamente não nos deixará frustrados nesta certeza de ter já obtido o prémio dos bem-aventurados.
Omito outras lembranças pessoais e circunstanciais que os dois condiscípulos, felizmente vivos, padres Tomás Gonçalinho e Gonçalo Guedes, poderão recordar-nos.
P. Geraldo J. A. Coelho Dias OSB |
Presidiu ao funeral no dia 25 de Janeiro, às 10,30 horas, D. Júlio Tavares Rebimbas, estando presentes a concelebrar o Sr. Arcebispo de Braga, o Bispo Emérito de Selas, Porto, Bié, Angola, D. José Augusto Pedreira, bispo auxiliar e cerca de 80 sacerdotes, bem como religiosas e centenas de amigos e admiradores.
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