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Acontece que o senhor comissário afirmou o óbvio, que transcrevo da imprensa: a letra do Hino Nacional, conhecido como "A portuguesa" (só este nome já é divertido: qual é o referente nominal de "portuguesa? Canção? música? Afirmação? Proclamação? Luta?), da autoria de H. Lopes de Mendonça, não lhe parecia "adequada à nossa civilização e que não pode ter nenhum eco no coração da juventude evocar a vitalidade da pátria gritando 'às armas' e propondo-nos marchar contra os canhões".
Tem razão Alçada Baptista. Não fez o comissário mais que o rapaz da história que começa a gritar "o rei vai nu", coisa que até aí ninguém via ou não dizia que via. Esta nudez do rei, ou do hino, que é a de todos os hinos nacionais, e que se manifesta pela afirmação do sentido nacional em torno de símbolos bélicos, ou belicistas, já fora evidenciada num escrito aí dos anos 70, quando se conjugavam e se cozinhavam em banho-maria todos os elevadíssimos e nobilíssimos ideais revolucionários, pelo então jovem professor Arnaldo Saraiva, num daqueles folhetos semi-clandestinos que então prolideravam como forma de debate de ideias, e que se intitulava justamente "Os Hinos Nacionais". Os hinos não mudaram, e mudaram algumas mentalidades. Não todas, nem de forma profunda e definitiva. Imagino que o senhor Le Pen fosse capaz de pronunciar hoje mesmo, e de forma exaltada, as palavras do hino francês "aux armes, citoyens", mesmo sem lhe dar um sentido metafórico. Aos ideólogos de alguns movimentos revoltosos da Argélia, de Angola, do País Basco, dos Curdos, dos Corsos ou de Timor Leste talvez faça jeito convencer os seus combatentes do ideal bélico traduzido nas violentas expressões de muitos hinos nacionais.
No entanto, em época de construção de ideais de paz, cantar tais palavras só se pode justificar por uma de duas atitudes mentais ou políticas: ou esvaziá-las de sentido, como acontece em tanta letrinha balofa de canções; ou assumi-las em sentido figurado, como subtilmente declarou o primeiro ministro, ao afirmar que "hoje não marchamos contra o inimigo; hoje os portugueses são chamados a pegar em armas para construírem a paz". Boa é a intenção e hábil a aplicação, mas permanece o equívoco: será que a paz precisa de armas para se construir? As armas, mesmo as metafóricas também constituem uma metáfora bélica. Não será possível encontrar melhores metáforas? Falar de armas e de canhões é sempre reconhecê-los. A metáfora ou engendra ou edifica sempre a sua fonte como modelo.
É certo que a Bíblia está cheia de imagens e de factos históricos violentos, e que o próprio Cristo utilizou imagens bélicas, como a da espada: "não vim trazer a paz, mas a espada". Porém S. Paulo, ao falar da construção de um novo espírito, em vez da vulgar imagem da luta, prefere utilizar outra imagem, muito mais rica e profunda: "revesti-vos dos pães ázimos da justiça e da verdade". Mas podem encontrar-se nos seus escritos também imagens de luta, como aquela "combati o bom combate". Assim, metaforicamente, poderemos pensar em marchar contra os canhões da intolerância e gritar "às armas" contra a exploração, contra a exclusão social e contra o imperialismo, ou, afirmando pela positiva, pela justiça social, pelos valores fundamentais, por melhores condições de vida, pela liberdade religiosa, pelas quarenta horas, pela despenalização das drogas ou pela obrigatoriedade do preservativo, como ensina o anúncio. Tudo é questão dos ideais que cada um assume.
No entanto, por muito metafóricas
que possam ser as expressões, as imagens impressas da luta,
das armas, do combate, nunca deixam de ser imagens bélicas,
arreigadas no nosso subconsciente individual e/ou colectivo. A
linguagem também tem um papel pedagógico: insistir
em metáforas de guerra ou de luta cria conceitos de luta
e de guerra; as imagens de conflito aproximam as mentes do espírito
do conflito. Há-de ser por palavras e por imagens de bondade,
de magnanimidade, de paciência, de perseverança,
de justiça e de fraternidade que se poderá criar
uma mentalidade sensível a tais valores. Como fez, por
exemplo Isaías, ao descrever o reino messiânico com
a imagem da convivência entre o lobo e o cordeiro e do leão
que come o feno com o boi, em vez de imaginar os cordeiros a marchar
contra os lobos ou os bois a armarem os chifres como armas contra
os leões (ou as águias, ou os dragões, tanto
vale).
2. Como é de lei, os senhores jornalistas, uma vez descoberto e repetido o filão sensacional, sentiram a obrigação de colocar o problema aos senhores deputados. Então aí a problemática atingiu o seu auge: os deputados, como senhores da pátria, entenderam que "símbolos são símbolos" (oh frase verdadeiramente grandiosa!), que nada de mudar, viva o hino sacralizado e dogmático, porque fora do hino não há pátria e a salvação está posta em causa. Apenas um senhor deputado, menos político e mais filósofo, teve o cuidado de salientar que o hino já não é o que era: antes marchava-se conta os bretões, agora contra os canhões, que também termina em -ões. Afinal o hino é fruto de uma situação concreta, a luta contra a Inglaterra, a quando do ultimatum, numa altura em que Junqueiro lhe chamava "porca e bêbeda" e em que os republicanos brandiam contra a monarquia o espectro da ambição britânica sobre os territórios africanos. De sagrado e de simbólico, algo terá, mas ténue. O sentido da sacralidade e do simbolismo é aquele que lhe for dado em cada momento histórico.
A modificação da letra do hino será então importante, valerá a pena? Será antes algo com foros de sacrílego ou de iconoclasta ("os símbolos são símbolos")? Ou será preferível deixar os nossos jovens, agora que o ministro da Educação voltou a valorizar oficialmente o hino nas escolas, onde tem andado esquecido, a imbuir-se desse espírito metaforicamente bélico e de sentido duvidoso, sob a convicção de que a letra é secundária?
Não me pronuncio por nenhuma das soluções, que nenhuma é boa, e portanto nehuma é melhor do que a outra. Nem se queira transformar o episódio flaviense numa espécie de batraquiomiomaquia entre escritores e deputados, para gáudio de alguns mirones. Mas confesso que, ao contrário do Presidente que se sentiu bem a cantar o hino, sinto alguma relutância em fazê-lo quando se chega ao tal sítio do "às armas", que ainda por cima é onde geralmente se canta mal e gritado, e do marchar contra os canhões.
Sobretudo porque sinto a intransponível dificuldade em identificar o corpo da metáfora; para uns os canhões serão a UE, a moeda única e a Comissária Bonino; para outros, será o imperialismo e o grande capital; para outros os ciganos ou a polícia à porta do Parlamento; e assim por diante. Nos campos de futebol, que é onde mais se canta o hino, estou a ver alguns a chamar canhões aos adversários e outros a imaginar o "às armas" que hão-de ser por certo as chuteiras nas canelas do adversário ou os palavrões malcriados e os insultos que proferem os jogadores e os dirigentes durante o jogo, devidamente captados pelos microfones, para esclarecimento dos espectadores mais adultos.
Por isso é que, ao chegar a esse ponto fatídico, espécie de curva da morte do hino, aplico à música do senhor Alfredo Keil (que até era de ascendência alemã) aquela universal letra apta para qualquer canção: la-lá-la, la-lá-la, la-ra-lá-la-la-lá, etc. Garanto que não fica mal e nos sossega a consciência.
C. F. |
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De 19 a 25 de Junho
TELEVISÃO
- Esta semana o espaço
de Cinco Noites, Cinco Filmes da RTP2 é dedicado
a John Cassavetes, talentoso actor de cinema e televisão,
realizador e escritor americano, de origem grega (1929-1989),
que recebeu uma nomeação para o Oscar de
Melhor Actor Secundário em «Doze Indomáveis
Patifes», de Robert Aldrich, em 1967. Actuou em «A
Fúria», de Brian De Palma (1978) e «De
Quem é a Vida Afinal?», de John Badham (1980),
entre outros. Mas foi como realizador que ele mais se destacou,
estreando com «Sombras» (1961), rodado com um
pequeno orçamento, uma câmara de 16mm e um grupo
de amigos. Apesar do seu acabamento grosseiro, ganhou um Leão
de Ouro no Festival de Veneza e estabeleceu a tónica dos
seus filmes seguintes: improvisado, intimista e realista. Os primeiros
foram «Too Late Blues» (1961) e o subestimado
«Uma Criança à Espera» (1963).
Mais tarde, seguiu um rumo independente, adquirindo refinamento
e recebendo o reconhecimento pelos seus dramas vigorosos, geralmente
protagonizados pela sua mulher Gena Rowlands no papel principal
e com o seu velho amigo Peter Falk (o conhecido Columbo
da TV). Da sua obra destacam-se o drama «Uma Mulher sob
Influência» (1974), o terror «A Violação»
(1981) e o shakesperiano «A Tempestade», de 1982.
«Tempo de Amar» (1971), «Gloria» (um thriller sentimental de 1980) e «Amantes» (1984) são os seus mais célebres trabalhos atrás das câmaras, expressando um universo torturado e angustiado, dilacerado por conflitos aparentemente inultrapassáveis e sugerindo que a constante presença da sua mulher, Gena Rowlands, como a sua musa, seria uma maneira de sublimar outras dificuldades. Mas isso não obsta à profundidade, sombriamente dramática, do seu cinema.
Em «Sombras», na sua estreia como realizador, Cassavetes mostra-nos Nova Iorque, a cidade dos anúncios de néon. O coração fervilhante da metrópole encontra-se em Manhattan. É lá que os três heróis se movimentam, que as três sombras se misturam com uma população vivendo num ritmo alucinante. As sombras são Lelia, Hugh e Ben, três jovens negros. Vivem juntos e ajudam-se mútuamente. E têm entre si aquele carinho tão puro quanto excessivo, típico dos povos de países mais quentes. Os três têm consciência de que nunca serão verdadeiramente americanos e que a sociedade americana nunca os deixará sair das sombras. Um filme improvisado, feito com uma verba mínima. Os actores, Hugh Hurd, Lelia Goldoni e Ben Carruthers, interpretam-se a si mesmos e são filmados por uma impressionante câmara de mão. Nenhuma solução é apresentada. Trata-se de um dos filmes de estreia mais importantes da cinematografia norte-americana desde «O Mundo a Seus Pés» de Orson Welles. O argumento foi escrito pelo próprio Cassavetes e Erich Kollmar foi o responsável pela fotografia. Bom gosto na selecção musical com o jazz de Charles Mingus e Shafi Hadi (para ver na segunda-feira, dia 23). Neste ciclo ainda podemos ver: «Rostos», drama, de 1986, com John Marley e Gena Rowlands: a implacável destruição de catorze anos de matrimónio de um casal da classe média (dia 24); «Uma Mulher sob Influência», drama, de 1974, com Gena Rowlands e Peter Falk: uma mulher que caminha lentamente para a loucura (dia 25); «A Morte de um Apostador Chinês», drama, de 1976, com Ben Gazzara e Seymour Cassel: uma incursão ao submundo da Mafia chinesa, do jogo e do álcool (dia 26); e, «Noite de Estreia», drama, de 1977, com John Cassavetes, Gena Rowlands e Ben Gazzara: uma grande actriz de teatro deixa-se dominar por uma crise existencial na noite de estreia de mais uma peça (dia 27).
Outros filmes que poderão ser
vistos ainda esta semana: «Frankenstein», terror,
de David Wickes (1993), com Patrick Bergin e Lambert Wilson (RTP2,
dia 19); «O Expresso Bola de Neve», comédia
dos estúdios Disney, de Norman Tokar (1972), com Dean Jones
e Nancy Olson (RTP1, dia 20, ao princípio da tarde);
«Frankenstein Júnior», terror, de Mel
Brooks (1974), com Gene Wilder e Peter Boyle (RTP2, dia
20, ainda integrado no ciclo de clássicos do terror exibido
em Cinco Noites, Cinco Filmes); «Shogun»,
drama e aventura, de Jerry London (1980), com Richard Chamberlain
e Yoko Shimada: o filme que deu origem à série de
TV exibida na SIC (RTP1, dia 25).
CINEMA
- Passaram já
sessenta anos desde que Alfred Hitchcock dirigiu «À
1 e 45» (Sabotage), primeira versão cinematográfica
do livro "The Secret Agent", de Joseph Conrad.
Agora, Christopher Hampton, autor dos argumentos de «Ligações
Perigosas» e «Mary Reilly», que se estreou
como realizador em «Carrington», realiza um nova
versão desse livro, mantendo-se fiel ao relato do autor,
que assim definiu o seu romance: "um relato anarquista
de desolação, loucura e desespero".
Com uma muito bem cuidada ambientação de época, encenada nos estúdios londrinos de Ealing, um sólido elenco e um pequeno orçamento - quase todos os actores baixaram os seus cachets para actuarem neste filme -, Hampton transporta-nos para a corrupta Londres de finais do século, regida pelas convenções do puritanismo victoriano.
Ao longo de um filme tenso e vibrante pululam vários personagens dos bas-fonds londrinos, todos eles relacionados com uma terrível descoberta: em 15 de Fevereiro de 1894 é encontrado um cadáver em Greenwich Park (Londres), o corpo de um homem que se matou ao tentar fazer explodir uma bomba nas proximidades do Observatório Real. O argumento de «O Agente Secreto», tal como o livro, é baseado num facto verídico. Adolf Verloc (Bob Hoskins) é um agente russo infiltrado numa associação anarquista. Sob a aparência de um homem pacifíco, casado com Winnie (Patricia Arquette) e cuidando do irmão desta, o atrasado mental Stevie (Christian Bale), Verloc tem como missão a destruição do observatório de Greenwich. Para levar a cabo essa tarefa arrasta o inocente Stevie.
Com uma estética muito próxima de um telefilme, Hampton demonstra que com poucos meios se pode realizar um filme correcto, sobretudo graças a grandes actores como Gérard Depardieu e Robin Williams. Este último, amigo de Bob Hoskins desde que contracenaram juntos em «Hook» (de Spielberg), decidiu não figurar nos genéricos para não suscitar expectativas de grande produção ou comédia nos espectadores.
Produzido à boa maneira britânica pela independente Norma Heyman, da Capitol Films (que produziu «O Cônsul Honorário», «Ligações Perigosas» e «Mary Reilly»), e pelo próprio Bob Hoskins, este excelente policial é distribuído por Lusomundo Audiovisuais, sendo um exclusivo da programação dos cinemas Warner-Lusomundo, de Gaia.
Vasco Martins |
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