Cultura:


História herói-cómica da minha viagem de comboio

O Brasil não é terra de grandes comboios. O trem não lançou raízes seguras na terra de Vera Cruz, cedendo lugar às estradas infindáveis, que irão culminar na construção da chamada trans-amazónica, a que os cologistas atribuem um impacto ambiental negativo de dimensões universais. Essa pouca popularidade do trem constituiu um motivo suficiente para que a minha cunhada, nada e crescida por aquelas paragens tão pródigas, criasse a expectativa legítima e plausível de fazer uma viagem no mais emblemático e romanesco de todos os transportes terrestres.

Bom samaritano interesseiro, lancei o repto:

- Viagem de comboio só há uma: ao Douro e mais nenhuma!

Vai daí, combinado um dia de sábado, aí pelos confins do mês de Agosto, lá nos juntamos uma boa meia dúzia de familiares ansiosos de novas experiências no conhecimento do progresso europeu que os transportes têm experimentado desde os tempos do ministro Amaral, na Estação de São Bento, quase indiferentes aos azulejos, azulados ou polícromos, que nos falam da história heróica e das tradições quotidianas, e lá nos introduzimos, repletos das mais emocionantes expectativas, no comboio com destino à Régua e ao Pocinho. Pontualidade britânica na partida. Inevitável roncadura de motores diesel pelos túneis negros até Campanhã. Paragem e audição da voz distorcida e roufenha do funcionário de turno, em pronúncia do norte e bem marcada pelos traços populares da sua origem. Arranque pachorrento e apitado.

Depois o monstro de ferro, no qual se faziam transportar as mais variegadas modalidades de caras, conspectos, vestimentas, malas, cestos, sacos, gigas, expectativas de viagem, ânsias de encontros, olhares misteriosos, vai percorrendo as estações em que os antepassados foram deixando algo do seu labor e de uma criatividade que parece irremediavelmente perdida: edifícios de um agreste equilíbrio, em popular cantaria de granito, moldurados por azulejos onde a arte se exprime pela simplicidade; coisas modernas, entre o pacóvio e o funcional, nas quais escreveram WC onde antes se escrevera retretes, e substituíram os antigos bancos de madeira por umas cadeiras de plástico ratado pela falta de civismo dos utentes. Paredes riscadas, plataformas degradadas que contrastam com algumas estruturas de cimento com ar modernaço mas pouco imaginativo.

Casas da beira da linha, com vides e figueiras à porta e galinhas no quintal. Cartazes que anunciam indefinidamente a duplicação da linha por não sei quantos mil contos. Paragens chiadas de fazer estremecer os nervos. O tam-tam das rodas sobre os trilhos era igual a todos os outros.

O comboio andava um ou dois quilómetros entre cada paragem. Parecia o metro de superfície. A velocidade de cruzeiro rondava os valores definidos para as locomotivas do século passado. O fumo do carvão fora substituído pelo fumo do gasóleo dos motores diesel. Neste andamento, ao fim de uma hora e um quarto tínhamos chegado a Penafiel. Cerca de uns trinta e picos quilómetros do Porto.

Continuou a odisseia sobre carris: às tantas o bicho-comboio atravessa-se no meio de uma rua, enquanto os automóveis aguardam pacientemente, em atitude eternamente repetida, que a senhora da estação levante a bandeirinha vermelha enrolada. De novo o arranque pachorrento, profissional, regulamentar. De novo as casas da beira-linha, com quitais de couves e uma vaca remoendo.

Ao fim do túnel, já umas boas duas horas andadas e com uma mudança de carruagem pelo meio, lá se nos depara o mítico e ansiado vale do Douro. O rio, outrora saltitante, amolecia pachorrento entre as árvores, as casas, as estradas. A paisagem pontuada pelas belas e nobres construções de antanho, misturadas espinhosamente com as "maisons" de emigrante e os chalés de novos ricos. Como souberam os antepassados integrar na paisagem as grandes e as pequenas habitações,as nascidas da pobreza ou as nascidas da opulência, em contraste danado com a falta de sentido estético das modernas edificações, nascidas do exibicionismo e da falta de gosto estético, onde se misturam, em caldo insonso de uma alegre inconsciência colectiva, a pretensão deseducada dos proprietários, a invenção trôpega e vesga de arquitectos que circulam à margem do gosto estético, e as ambiciosas autarquias, sempre tão exigentes e legalistas por causa de um pormenor ridículo e que não sabem criar padrões de qualidade e beleza no jogo entre a paisagem ancestral e as necessidades actuais, entre o tradicional e o moderno, entre a natureza e a cultura!

Apesar de tudo, o Douro apelava-nos pela sua magia. As vinhas e os pomares, as cerejeiras de Resende ou algumas perdidas oliveiras de São Martinho de Mouros, as barcaças antigas e os motores fora de borda, as lixeiras e as ameaças de incêndios: tudo isso é um vale do Douro de grandes potencialidades, de enormes dores e de uma beleza incomensurável, que possui uma insuperada capacidade de resistência a todas as agressões, a todos os contratempos, a todas as crises de chuvas e sóis, como as almas, ambiciosas ou generosas, daqueles que o herdaram.

Lá vem a mítica cidade duriense! Moledo, Godim, Peso da Régua. O combio abranda, na tranquilidade de quem realizou soberbamente a sua tarefa. Olho o relógio. Mais de duas horas e três quartos se volveram desde a estação de São Bento. Heroicamente, tínhamos percorrido cento e picos longuíssimos quilómetros. Quase tínhamos atingido a histórica média de trinta quilómetros horários. Conco vezes mais do que se tivéssemos ido a pé! Aconteceu na Europa, não no Oeste, pela mão da empresa pública mais ronceira que Deus ao mundo botou. O progresso aguarda a plenitude dos tempos.

Senti-me como o Eça: se não fosse o sabor rescendente e revitalizador da sopa caseira, ainda agora meditaria, nos confins de São Leonardo de Galafura, perdido entre uma colheita de amoras silvestres e um cavalo atravessado na estrada, sobre a insuperável beleza e trágica sorte das gentes durienses.
C.F.
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PONTAPÉ DE CANTO

Golos "suspeitos" e não só

O futebol português, passado o Campeonato da Europa e os Jogos Olímpicos que foram pontos de atracção do Verão, retomou o seu lugar no quotidiano nacional.

E, neste início de época, o que mais impressiona é o facto de, mais do que as proezas dos atletas (e há alguns de excelente nível como, ao acaso, são João Pinto, Valdo, Panduru e Donizetti do Benfica, Hadji, Marco Aurélio, Dominguez, Paulo Barbosa e De Wilde, do Sporting, Jardel, Artur, Wetl, Sérgio Conceição, Woszniak, do F. C. Porto), serem as suspeições e os eternos atritos entre dirigentes que mais marcam o quotidiano e "vendem" jornais.

O Campeonato da I Divisão nasceu mal, este ano. A arbitragem de Pinto Correia no União de Leiria-Porto, da 2ª jornada, mais do que a interessante carreira do Sporting de Braga, do Farense, do Leça e do Vitória de Setúbal, por exemplo, foi o facto que mais tinta fez (es)correr nas páginas dos jornais e nos espaços televisivos.

A verdade é que Pinto Correia errou, esteve mal, prejudicou mais o Leiria (lances houve em que o Porto também foi prejudicado); mas daí até se dizer que errou voluntariamente (como se ouviu num programa da SIC), que prejudicou o Leiria porque de outro modo o Porto não era capaz de ganhar o jogo, isto é, lançando sistemática suspeição sobre o árbitro e outras pessoas, sem provas concretas em favor dessa suspeita, parece-nos ser um caminho que não dignifica ninguém, nem sequer aqueles que pontificam no comentário jornalístico escrito ou televisivo. Quem acusa deve fornecer as provas do que diz; não basta recorrer a subterfúgios, a alusões a um poder oculto qualquer, a hipotéticas manobras de um apelidado "papa" do futebol ou dos seus acólitos. O nevoeiro informativo criado com esta actuação não beneficia ninguém, apenas atira lenha para uma fogueira que não precisa de ser alimentada. Como escreveu José Manuel Moroso (Expresso, 14/9/96), "se um jornalista lança em público uma "suspeição" - com todas as consequências gravosas -, é porque trabalhou mal, ficando apenas na antecâmara do tema que pretende noticiar. É porque se ficou pelo recurso fácil às aparências sem ter cumprido a sua elementar e necessária tarefa de investigação e prova." E, mais adiante, o mesmo jornalista conclui: "Há anos que se vêm fazendo <<revelações>>... sempre adiadas. Tudo se vai adiando; adia-se a Justiça, adia-se o futebol." Quase apetece dizer: quem sabe coisas ou conhece factos diga-o alto na praça pública, "chame os nomes aos bois", ajude, com clareza, a limpar as suspeitas que todos os dias são alimentadas...

No meio de tudo isto um facto positivo deve ser assinalado: na primeira ronda das competições da UEFA as equipas portuguesas tiveram um comportamento muito positivo: "razoável" o Vitória de Guimarães com uma derrota tangencial (2-1) em Parma, bom o Sporting com um empate (1-1) em Montpellier, o Benfica com uma folgada vitória (5-1) perante os polacos do Chorzow, brilhantes o Boavista pela vitória (3-2) frente ao Odense (Dinamarca) e o F. C. Porto com uma bela vitória (3-2) sobre o temido Milan, no mítico estádio de S. Ciro.

De resto no Campeonato, poucas novidades: Benfica, Porto e Sporting já seguem na frente da classificação; novidade apenas a presença entre eles do Sporting de Braga e do Farense, todos com 7 pontos.
Bernardino Chamusca
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