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Ainda a sociedade tecnológica

A sociedade tecnológica em que vivemos permite que o homem tenha um progressivo domínio sobre a natureza. Isto é positivo na medida em que, dando cumprimento à palavra do Génesis - «povoai a terra e submetei-a» - representa a afirmação da superioridade do espírito sobre a matéria, a superioridade do homem sobre todos os outros seres conhecidos neste universo que está ao nosso alcance. E esta superioridade não está na sua força física, mas no poder da sua razão. É, pois, de ordem espiritual e não material.

Mas este domínio sobre a natureza não deve fazer esquecer ao homem que ele é não só espírito, mas também matéria e que a sua vida depende do equilíbrio existente entre ele próprio e a natureza em que está inserido. Não lhe deve fazer esquecer que dominar não é destruir e que, ao destruir a natureza, destrói-se a si próprio. O risco é grande, porque o domínio das coisas não é só poder, o que, por si só, já constitui uma grande tentação, mas dá ao homem capacidade para se apoderar de sempre mais abundantes riquezas. E, no referente ao ter, o homem é insaciável.

A técnica, na verdade, possibilita ao homem produzir cada vez mais e melhor. Mas, para isso, ele deve apoderar-se dos recursos de vária ordem que a natureza põe à sua disposição. E estes não são inesgotáveis. Assim, o homem deve, no seu próprio interesse, aceitar pôr limites à sua ambição de possuir sempre mais. Por outro lado, a manter-se a organização internacional da economia, como a conhecemos, só a alguns homens é possível possuir cada vez mais e de melhor qualidade, estando os outros, e de certo a maior parte, condenados a uma pobreza, pelo menos relativa, face ao poder económico dos mais ricos.

Aqui não há lugar para os valores evangélicos da pobreza, ainda que seja apenas em espírito, do desprendimento dos bens materiais em ordem à valorização dos bens do espírito e sobrenaturais, e da solidariedade.

Tudo, neste mundo, se mede em termos de eficácia e de interesses económicos. E este processo é tendencionalmente escravizante para o homem. A posse dos bens materiais só é libertadora quando o homem consegue colocar esses bens ao seu serviço e ao serviço dos outros homens. A maior parte das vezes o homem serve os bens em vez de se servir deles.

O afã da produtividade não escraviza apenas os trabalhadores, o proletariado, constantemente chamado às lutas sindicais. Conhecemos a forma como vivem alguns quadros superiores de empresas apostadas em atingir os picos da produtividade e inseridas no circuito da competitividade. Não trabalham para viver, antes vivem para trabalhar, passando para segundo plano a sua vida pessoal e familiar.

O crescimento económico, como meta única a atingir a qualquer preço, faz esquecer as outras dimensões do homem ou outros objectivos de ordem qualitativa, criando aquilo a que Marcuse chamou o «homem unidimensional».

A mentalidade nascida do desenvolvimento científico e técnico do nosso tempo sente dificuldade em entender conceitos de ordem espiritual. Tudo o que não seja susceptível de ser medido, pesado e avaliado em termos de rendimento económico para que serve afinal? Isto traz problemas, como é evidente, para a vida religiosa. Que interesse pode ter um mundo futuro, que ninguém sabe o que é, a que temos acesso apenas pela fé e de que só podemos falar por imagens e comparações? Que mundo novo é esse, a que se refere o livro do Apocalipse, esse novo céu e nova terra, onde não haverá mais dor, nem lágrimas, nem luto, porque não haverá mais morte? Quanto à dor física, está ao alcance da técnica fazê-la desaparecer do universo humano. A morte, essa foi desterrada das preocupações do tal «homem unidimensional».

Religião, então, para quê? Para pôr peias morais ao comportamento humano? A única ética aceitável (dizia-se há pouco em reunião de empresários) é a da fidelidade à empresa e aos seus objectivos de lucro. Religião, como proposta de salvação? Mas o homem está em vias de encontrar a solução para todos os seus problemas pelo progressivo desenvolvimento da ciência e da técnica!

(Fique bem claro que não se pretende com isto desvalorizar o progresso científico e técnico e as incontestáveis vantagens que ele tem trazido para a vida do homem. Seria supina imbecilidade. O que se pretende, sim, é reflectir sobre as consequências negativas que pode ter uma mentalidade tecnicista, que despreze as várias dimensões da pessoa humana e da vida do homem).

A ciência e a técnica não estão dependentes da religião. Mas não podem prescindir de normas éticas, dada a sua ambivalência, isto é, de tanto poderem ser postas ao serviço do homem como servirem para a sua destruição. A salvação do homem não depende da técnica, mas da finalidade que ele quer dar à sua vida, da descoberta do sentido que a sua vida tem nesta terra, ou da missão que lhe foi dada a realizar na história. E disto não cura a técnica.

A religião tem aqui o seu lugar e um papel de suma importância a realizar. Para isso, ela não pode nem distanciar-se do mundo, ao qual deve comunicar o «suplemento de espírito», que humanize a ciência e a técnica, nem pode perder a sua identidade, por uma forma de incarnação que não seja referencial e profética para o homem..

Gonçalves Moreira


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