[Terra Pura] [Festival Falun]

Menos mal nos queda Galicia

A Galiza durante os meses de Julho e Agosto é um autêntico oásis para os apreciadores das músicas de raiz celta. Durante o Verão, não se consegue contar pelos dedos o número de festivais folk, numa região onde a tradição está mesmo "de moda". Entre os dias 1 e 4 de Agosto em Corunha, Guitiritz (na província de Lugo) e Vigo, muito se pôde ver: Luar Na Nubre, Milladoiro, Berrogüetto, Muxicas (ambos da Galiza), Llan de Cubel (Astúrias), Wolfstone, David Spillane e Tannahill Weavers (Escócia), Oyster Band (Inglaterra), Sharon Shannon (Irlanda), Värttinä (Finlândia) e Realejo (Coimbra).


Pode afirmar-se que na Galiza o vasto território da folk, sobretudo o de raiz celta, não se confina a uma pequena elite dos "amigos da terra". Antes, é uma expressão que vai atingindo as massas. E se aqui em Portugal as inúmeras festividades de aldeia que invadem o país durante o Verão, como as nossas senhoras dos Remédios, da Agonia, do São Matias, etc. são regadas musicalmente com bandas de covers oriundas de Oliveira do Hospital ou de Arcozelo que interpretam os últimos êxitos "pimba", na Galiza tais eventos merecem o acompanhamento de bandas de música tradicional quer locais, quer estrangeiras. Foi por exemplo o que aconteceu na pequena povoação de Guitritz onde pudémos observar os finlandeses Värttinä, entre carradas de foguetes, vinho carrascão, entrecosto e enchidos grelhados.



Intercéltico da Corunha

Durante os dias 1 e 2 de Agosto teve lugar no Coliseu da Corunha aquele que foi o primeiro festival Intercéltico daquela cidade, a que 6000 galegos assistiram. Para dar início ao evento, nada melhor que uma banda da casa, neste caso os Luar na Nubre (Corunha). Durante a sua actuação ficou patente a adoração que este povo tem pela gaita, seja ela galega ou escocesa. Sempre que um gaiteiro soprava no fole, o êxtase generalizava-se, e as danças tomavam a turba de assalto. Contudo os Luar na Nubre não foram por aí além. Muito certinhos e em toada morna, iam interpretando composições galegas com os olhos postos no mar que os liga com as comunidades celtas, mas com pouca chama.

Seguiu-se, talvez, o maior desperdício musical da cena folk britânica. David Spillane e a sua progressiva pandilha.
David está a tornar-se num autêntico meia branca da música tradicional. Ele até é um excelente gaiteiro, dos melhores que pudemos encontrar em tais territórios, não havia necessidade… aquilo que se viu na Corunha… tornar as "uilean pipes" um instrumento para uma base músical e atmosférica de "easy listening", como Kenny G tem feito com o clarinete.

Não há pachorra!… mas pior é ainda a banda que o acompanha.
Baixo, guitarra e bateria a tentarem soar como uma banda progressiva dos anos 70, exibindo um tecnicismo de quem não falta a uma lição, mas que se esquece que a magia da folk reside na sua espontaneidade aliada à simplicidade, sem floreados, e na capacidade que esta tem de mexer com as audiências.

Nada melhor para curar a ressaca de bocejos contraída com David Spillane e a sua banda amestrada, do que os Milladoiro.
Eles que até beneficiaram do facto de Spillane ter posto o Coliseu a dormir. Consistentes e coesos quanto baste, os Milladoiro mostraram que estão para tradição galega como os Chieftains estão para a Irlandesa. 20 anos de actividade, dão para amadurecer um projecto que consegue exibir uma frescura exemplar. Por um lado sentimos que os Milladoiro são de ideias fixas e sabem muito bem o que querem. Nunca cederão a concessões de modismos, optando sempre pela forma tradicional de "agarrar" uma "muñeira" (uma das danças mais famosas da tradição galega). E que gosto dá ver as sinergias que os músicos trocam entre si, como se de um projecto jovem, com multiplas ideias e suor por escorrer, se tratasse. Por outro lado, a todo este entusiasmo e forma jovial de abordar a música, carece o facto de os Milladoiro estarem mais próximo do tal mar que os une à Irlanda, do que à ruralidade galega que projectos como Muxicas ou Chouteira tão bem exibem.

Com Sharon Shannon a adrenalina subiu ainda mais alto. Não porque a mágica concertina de Shannon nos elevasse a outros níveis. Apesar de todo o seu virtuosismo Sharon, quando desfolhava os jigs e os reels permanecia um pouco discreta, encolhida na sua cadeira, como se de uma menina tímida a quem lhe é dado ordens para não falar com estranhos, se tratasse. Só que a irlandesa trazia na bagagem uma arma secreta valiosíssima. Uma violinista de vinte e poucos anos que dá pelo nome de Athena Tergis e que nem sequer participou no último disco de Sharon Shannon intitulado "Each Little Thing". Parece que Athena roubou a Shannon toda a espontaneidade e jovialidade de outrora. Enquanto uma demonstrava um certo virtuosismo, como se de uma máquina tratasse, a outra sentia os jigs e reels que ia palmilhando com a alegria de quem sente que a música é o mais que tudo. O arco roçava nas cordas do violino a uma velocidade luz, e o corpo que acompanhava todas as notas prendia-nos os olhos, embriagando-nos. Com tal postura, só mesmo Mihály Sipos, o virtuoso violinista dos hungaros Muzsikás. Que saudades da frescura e entrega de Athena Tergis que conseguiu despertar grandes paixões, para uma música que se assemelha a uma esposa de meia idade, com quem casámos há já vinte anos e cujos segredos foram há muito desvendados.

O Intercéltico da Corunha continuou no dia seguinte com a fasquia em nível elevado, através dos asturianos Llan de Cubel. Uma jovem banda que consegue ter um nótavel entrosamento semelhante ao que vimos nos Milladoiro, com toda a postura envolvente da violinista de Sharon Shannon. Com os Llan de Cubel, as muñeiras envoltas num aroma algo escocês eram interpretadas a 300 kms/h, com uma segurança e técnica notável, fazendo das diferentes e constantes mudanças de ritmo, atributos tão simples como um mero trabalho de escola.
Mais uma banda que é urgente ver em Portugal, seja no Intercéltico ou Cantigas de Maio.

Para suceder à brilhante actuação dos Llan de Cubel nada melhor que os escoceses Tannahill Weavers, não só porque apesar dos seus quase vinte anos de actividade, mantém uma fibra idêntica à destes asturianos, mas porque a sonoridade era demasiado próxima. Mais um projecto que à semelhança dos Milladoiro não precisa de qualquer inovação estética, mostrando com fibra, entrosamento e uma forma coerente de compor que não cede a modismos, conseguindo criar a tão almejada sonoridade intemporal. Mais uma instituição da folk de raíz celta.

E o pior estava reservado para o fecho deste primeiro Intercéltico. Com a vocalista Mairéad Ní Mhaonaigh doente os Altan tiveram que adiar a sua tournée. Para mal de todos, não compareceram nas festividades da Corunha.

À semelhança do que aconteceu no Womad de Cáceres deste ano, lá foram os tapa buracos Oyster Band (que na Extremadura espanhola substituiram os Chieftains) tentar remediar a situação. E foi pior a emenda que o soneto. É o povo quem diz.

Longe vão os tempos criativos em que estes ingleses nos ofereceram "Love Vigilantes", "I Fought The Law" ou "Road To Santiago". Apesar de um novo álbum e uma tournée que se avizinha, a Oyster Band de há meia-duzia de anos a esta parte parou literalmente no tempo, perdendo toda a chama que lhe vimos na Festa do Ávante de há uns anos. Este é o caso típico em que o folk-rock tem um prazo de validade bem definido, e a Oyster Band há muito que se encontra fora da data de consumo. Não faz sentido continuarem a arrastar-se pelos palcos.

A fechar, outra banda escocesa. Os Wolfstone que deram provavelmente o último concerto da sua carreira. Os problemas com a editora Green Linnet agravaram-se e a dissolução é inevitável, podendo a banda voltar a juntar-se apenas para uma série de datas em Espanha. País que tem acarinhado não só estes escoceses como toda uma série de bandas de origem britânica que se movem na área do folk rock. Esta despedida mostrou-nos, talvez, o porquê de tantos problemas que os Wolfstone têm tido com a editora. Pôr um violinista a solar uns jigs e reels, numa banda hard rock que deve ter agora despertado para a movida gótica dos Mission e All About Eve, é um perfeito disparate. Apesar de uma forte sonoridade ao vivo, os Wolfstone acabam por se perder completamente, por serem medianos músicos rock que tentam mexer com a folk, acabando por não aflorar nem uma coisa nem outra.


Entre foguetes e entrecosto

No dia seguinte havia festa rija em Guitiritz na província de Lugo. De um local com excelentes condições para a organização de Intercélticos, passamos para um ambiente rural, com um palco demasiado pequeno a pedir reforma e com um som quase de lata, onde a assistência masculina envergava kilts escoceses e mostrava o seu quê de bárbara, tanto era o vinho que lhes corria pelo esófago. Este era um local de alto risco, envolto de barracas de entrecosto com álcool barato, em que os assitentes não iam para ali apreciar a música, mas sim apanhar uma "borracheira" de todo o tamanho. Daí que os Realejo tenham passado um pouco despercebidos. Além de terem sido os primeiros a tocar (com a assistência ainda muito calmae a beber as primeiras canecas), a sua música não se compadece com este tipo de ambientes. E o som de palco também não ajudou nada. Certinhos como sempre, fizeram um espectáculo que pouco ou nada diferiu daqueles que lhes vimos no nosso país, com destaque para um novo tema que bebe um pouco da sonoridade de marca nórdica e a versão em quinta velicidade de "Music For Found Harmonium" da Penguin Café Orchestra, responsável pelo levantar de alguma poeira.

Tal como os nossos festivais Super Bock ou Sudoeste, o índice de aceitação de uma banda era medido pelo grau de poeira. E os nossos cabelos começaram a ficar brancos com os Llan de Cubel, exímios na arte de tocar muñeiras em sexta velocidade. Só que para quem tinha estado no dia anterior na Corunha, assitir a um espectáculo destes asturianos em Guitiritz, foi como digerir um grande naco de entrecosto sem tempero, tais eram as limitações sonoras.

Além do som, muitos outros foram os problemas com que os Värttinä se depararam. Habituados ao silêncio, durante a tarde, com os sucessivos estrondos de foguetes, inúmeros foram os saltos de susto que as quatro meninas do grupo e o bebé de Sirpa, nada dados a estas festividades, iam dando.

À noite, toda a força que estas meninas possuem, foi substituido por alguma apreensão e timidez, devido não só às reduzidas dimensões do palco, como pela assistência masculina que se manifestava na máxima rudeza ao ver tais beldades nórdicas em cima do palco. E se a nova acordeonista (que substitui Riita) já não estava muito segura de si, pior ficou quando os olhos e os dedos dos assistentes apontavam na direcção das suas pernas. Ficou a lição de que nunca se deve levar mini-saia em ambientes destes.

Aquilo que se pôde assistir acabou por servir de aperitivo para a noite seguinte em Vigo, onde as condições de palco e som aumentaram substancialmente.


A imponência de Castrelos

Com um local que fazia lembrar os antigos circos romanos, em semi círculo, compreendido por uma parte mais próxima do palco coberto de relva, um fosso e bancadas de pedra, com inúmeras árvores à volta, a música dos Värttinä iria ser outra. Até porque o palco era muito maior, com dimensões semelhantes a um Super Bock, onde se sencontravam uns 15 mil assistentes muito mais ordeiros.

Com os finlandeses apresentaram-se também em palco os galegos Noitarega, Muxicas, Berrogüetto e Crema de Gaita (estes dois últimos não cheguei a ver devido ao adiantar da hora).

A noite começou à hora certa (por volta das 22h) com os Noitarega que exibiram alguma da riqueza do folclore galego, sem fazer concessões às sonoridades que vêm do mar do Norte. Mas à incipiência deste projecto, juntou-se a grande experiência dos Muxicas que nos ofereceram mazurcas, rumbas, alvoradas e canções que brotaram das tabernas. Através de bombos, tambores, acordeão, sanfona, gaitas, pandeiretas, conchas e pinhas os Muxicas edificam uma sonoridade moderna e intemporal, cuja factor de sedução é a capacidade de reproduzir as canções galegas com estes atributos em consonância com uma extrema pureza, a emanar apenas e só Galiza. O momento mais endémico da noite coube mesmo aos Muxicas, quando se apresentaram em dois temas com uma orquestra de pandeiretas, cristos (um instrumento que tem o formato de uma cruz e que possui as peças redondas de metal da pandeireta) e charrascos (outro instrumento de percurssão, feito e metal e que exibe sonoridade semelhante a estes). Impressionante ver e ouvir "O caneco" (um tema que a nossa Tonicha outrora interpretou) com a intensidade e coordenação de mais de 30 percurssionistas.

Värttinä tiveram a ingrata tarefa de nos fazer esquecer toda este riquíssimo legado, com as suas danças de raíz carelianas. E, perante 15 mil assistentes algo frios, a coisa não foi nada fácil. Depois da pequena amostra que foi Guitiritz pudémos observar os Värttinä na sua maior força possível. Além de nunca sabermos onde começa o festival da canção e começa a pop ou a tradição careliana, ficou bem patente a falta que faz neste projecto a antiga líder Sari Kaasinen (que puderam observar no Intercéltico do porto). O agora trio vocal (Mari, Kirsi e Sirpa) perdeu metade do vigor e chama do tempos idos de "Oi Dai" e "Seleniko", encontrando-se uma proeminência muito maior da secção instrumental, com destaque para o bouzuki e clarinete de Janne, bem como o contrabaixo de Pekka, a guitarra de Antto e a bateria de Anssi, dando aso para em certos temas, os rapazes exibirem todo o seu tecnicismo. De um projecto marcadamente feminino e com raízes profundas na tradição finlandesa, os Värttinä estão a trasformar-se numa amostra banal de pop/rock, e por vezes canção ligeira, com uns laivos de raíz careliana. As mulheres, decididamente, já têm a mesma força de outrora. A sorte é que nesta região da Carélia que compreende a parte sudeste da fronteira finlandesa, complementada com o lado russo, existem para cima de 200 projectos com a força e sonoridade dos Värttinä de outrora. Depois desta desilusão, a vontade de partir à descoberta de tal música em estado bruto é enorme.

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