«A vida é bela» de Roberto Benigni
Quereria não ter de escrever sobre o filme, sobre este filme, sobre este belíssimo filme, que tem no entanto momentos de menor esplendor.
Depois da Lista de Schindler poderá parecer pura repetição voltar à denúncia do fascismo e do nazismo. Depois da Lista de Schindler, depois do Regresso a Viena (Axel Corti), depois de O Ditador de Chaplin, depois de Elie Wiesel, e depois de tantos mais. Mas a questão não é o que se diz mas a maneira como se diz. E esse é o campo da inventiva da Arte. E este é, também por esse lado, um grande filme. Por isso mereceu o Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes do ano passado. Por isso foi premiado no Festival de Jerusalém do ano passado. Por isso recebeu muitos mais prémios.
E por isso também o seu autor foi acusado por alguns círculos de revisionista. Depois de O Ditador, um filme de 1940, Chaplin explicou: ««naquela altura, eu estava decidido a ir em frente com a realização do filme, porque era preciso ridicularizar Hitler. Mas se eu tivesse conhecido o horror dos campos de concentração, não poderia nunca ter realizado aquele filme. Eu não poderia ter sido capaz de lançar o ridículo sobre a loucura homicida nazi». Por isso mesmo o fez. Benigni fê-lo também, pela mesma razão. Já Elie Wiesel, não, quando escreveu o Testamento de um poeta judeu assassinado ou outras obras. Essa é uma obra de desespero, um grito gritado mesmo a quem lho não queira ouvir. Rir e fazer rir exige um equilíbrio emocional quase perfeito. Se se não trata de uma simples risota.
Reflectindo à distância sobre a loucura da shoah dos Judeus, Benigni constrói uma autêntica tragicomédia (comédia trágica ou tragédia cómica?, não é uma pergunta descabida). Faz as pazes com a História. Não a paz dos que a corrigem, neo-nazis, neo-fascistas, neo-goulags ou outros, todos os que dizem que o desastre dos anos 30 e 40 e 50 e 60 não existiu, é uma invenção. Não é, de facto, o extermínio afectou toda a gente e rasgou o século. Uma das memórias mais pungentes da minha vida aconteceu um dia que tive a coragem de entrar num campo de concentração nazi para turista ver, um campo feito museu. Não digo o que me aconteceu. Faz parte da minha intimidade e dos poucos que estavam comigo essa tarde.
Dizia que não quereria falar do filme. Mas quero, sim, falar do cinema italiano. Do seu perfume, da sua sedução, da sua delicadeza, da sua humanidade. Também Dante não precisou de ver o inferno para falar dele. E poucos, ou nenhum, o fizeram como ele.
A Itália que não é a terra apenas de Dante. É-a também de Petrarca, e de Giotto, e de Miguel Ângelo e de Leonardo, de Palestrina e de Vivaldi, de Verdi também, de Fellini e do Cinema Paradiso, a Itália de tantos que disseram o Homem de maneira sublime, expressão incontornável da capacidade de exprimir a Humanidade que somos.
É por isso que sinto pelo cinema italiano um fascínio único. Embora não entenda, continue a não entender, porque é que nos dão tanto cinema americano, a maior parte dele carenciado de um verdadeiro sopro de humanismo.
Elie Wiesel, no romance acima citado, de 1980, explica perfeitamente porque é que Benigni realizou, em 1998, este filme: «Eu não sabia que se pode morrer de silêncio, como se morre de dor, de tristeza, de fome, de cansaço, de doença ou de amor. E percebi porque é que Deus tinha criado os céus e a terra, porque é que tinha feito o homem à Sua imagem conferindo-lhe o direito e o poder de contar a sua alegria e de exprimir a sua angústia». Por isso falou. E Benigni fez o mesmo, afirmando, afinal, esta coisa tão simples: que «A vida é bela».
Arlindo De Magalhães