Ernesto Campos
"Estou convencido de que nós podemos caminhar para uma civilização de diálogo e
afecto. Sem guerras. Uma guerra é um com-
pleto absurdo"
Alçada Baptista
O dito popular "fazer o mal e a caramunha" traduz bem a situação do conflito israelo-palestiniano. Ambos os lados se agridem mutuamente com actos de guerra e de terror; e ambos igualmente se censuram as barbaridades desumanas com um discurso seráfico e compungido: "Vêde como eles são maus". Hipocrisia? Também pode ser expressão duma certa impotente nostalgia do bem.
Um texto da Unesco faz radicar a origem da guerra no próprio espírito humano; às vezes tão pervertido que chega a erigi-la em função social incontornável, motivada por "razões" as mais diversas - religiosas, ideológicas, políticas, económicas. Homero dizia dela que é negócio dos homens, quase como virtude tipicamente e honrosamente masculina: desonroso é morrer na cama. Sempre acompanhou a humanidade e não falta quem veja na guerra uma espécie de monda natural, necessária para assegurar o equilíbrio demográfico. Em última análise, porém, todas as guerras se reduzem a um mesquinho denominador comum: começam sempre pela discussão do meu e do teu.
É esta constância histórica uma fatalidade insuperável, inerente ao próprio ser humano? O certo é que é também ao longo da história que a guerra se vai "civilizando", isto é, impondo-se regras, convenções, instituições internacionais, tratados, com que se procura mitigar-lhe os efeitos. A par disto, teoriza-se a paz, faz-se o discurso do pacifismo e preconiza-se que "a força material das armas seja substituída pela força moral do direito", dizia já o Papa Bento XV a propósito da guerra de 1914-18.
Mas, paralelamente aos intentos de regulamentação, a guerra continua a fazer-se, cada vez mais mortífera pelo emprego de meios técnicos mais e mais engenhosos; "não foi desenraizada da humanidade" (GS 78), nem a passagem mágica dum milénio a outro a diminuiu. "É um mal que desonra o género humano" (Fénelon). Associa-se-lhe um outro mal, mais perverso e mais desonroso porque enjeita deliberadamente todos os expedientes que a civilização forjou para restringir os horrores da guerra: vitima inocentes sem o mínimo escrúpulo, todos são inimigos a abater ou a aterrorizar, liquidando-lhe, pelo medo, a vontade de resistir. É o terrorismo, que surge historicamente de modo mais notório com a Revolução Francesa; mas no último quartel do século XX refinou os meios de terror; e tem sido atribuída aos palestinianos a maioria dos actos terroristas - pirataria aérea, reféns, assassinatos, kamikazes suicidas, exportação de laranjas envenenadas com mercúrio - em Israel, no Líbano, em Viena, em Munique nos Jogos Olímpicos, etc.
Um jornal francês de 1978 escrevia: "Segundo planos preparados em Beirute pelo número dois da Fatah, Abu Ayad, braço direito de Arafat e antigo chefe do Setembro Negro, dois barcos devem abordar a costa israelita a 20 km de Telavive. Objectivo: os terroristas devem aproveitar o descanso da Sabat e a vaga de passeantes nas estradas e no centro da cidade para semear o pânico. A sua missão é assaltar um hotel à beira-mar e apanhar os clientes, que serviriam de reféns." Tratava-se de L'Aurore, tido como jornal de direita (seja o que for que isso signifique), que assim denunciava a perfídia dos terroristas.
Era possível, neste contexto, distinguir actos de terrorismo como crimes monstruosos e actos de guerra entendidos como legítima defesa ou mal inevitável. Uns e outros expressões do mal, certamente, mas com diferentes graus de malignidade e diversamente censuráveis - quase toleráveis uns, abomináveis outros. Mas o abismo atrai o abismo e eis que a guerra voltou à barbárie e se tornou terrorismo de Estado. Os terroristas de ontem surgem agora vítimas da guerra sem quartel e de humilhações sem nome.
Aos contornos deste conflito, independentemente da explicação histórica, económica ou religiosa, subjaz um aspecto paradoxal deste absurdo da guerra - o mal político. Mais do que descrever o fenómeno e procurar-lhe a causa, interrogamo-nos: como é que a política, inventada para substituir a guerra e para organizar em coexistência pacífica e cidade dos homens, conduz afinal à destruição do homem pelo homem? Paul Valadier interroga-se: o mal político é perversão transitória ligada à perversidade de certos detentores do poder como Hitler ou Stalin? Ou é tentação permanente do género humano? No estado actual da guerra na terra de Jesus Cristo, três quartos dos judeus apoiam a guerra em larga escala. Os palestinianos resistem até ao martírio. Perversão generalizada?
Toda a maldade vem do medo e da fraqueza. Os judeus recordam Auschwitz, e os seus teólogos queixam-se de Deus: não interveio... porque não pôde; afinal não é omnipotente; e vingam-se de já não serem o povo eleito. Os palestinianos são a réplica inevitável: igualmente mal-amados, igualmente recusam a coexistência.
Eis o mal: recusa e cobiça. Hoje com dimensão política. Na história do pensamento ocidental explicado diversamente desde S. Tomás e St.º Agostinho a Leibniz e Kant: a sua natureza é moral ou metafísica? Problemática complexa que afinal se subsume na sabedoria do monstro de Frankenstein: "tenho no coração o amor e o ódio, ou satisfaço um ou satisfaço outro". Nos textos bíblicos, traduzindo-se nos sofrimentos de Job, na angústia do Servo Sofredor e mergulhando raízes no pecado original. Talvez as raízes vão mesmo mais fundo: segundo a Tradição, até ao grito do anjo rebelde - Non serviam, não servirei.
Poderemos desaprender isto? Ensina-o também a história: sem Deus, não. Seria reconfortante que os governantes que são crentes completassem a fórmula da tomada de posse: assim Deus me ajude.