Arnaldo Pinho
A Revista Portuguesa de Filosofia (e aqui aproveito para prestar homenagem a esta instituição cultural ímpar no nosso país) é dedicada, em seu número um, deste ano, ao tema "Filosofia Social e Política na era da Globalização".
E traz como habitualmente notabilíssima colaboração portuguesa e estrangeira, bem enquadrada no texto do seu Director, João J. Vila Chã.
Desta destaco, por vir ao encontro teórico de algumas interrogações que se têm levantado, o texto de João Cardoso Rosas, da Universidade do Minho, que leva o título em epígrafe.
Efectivamente, ao reflectir sobre a recente invasão do Iraque e ao ouvir os pregoeiros americanos da Democracia e também ao ouvir alguns que justificadamente condenaram a invasão, bem como a propósito de outras coisas, tem-me parecido a mim, simples observador e não perito em ciência política, que por detrás de certas concepções de direitos humanos está uma ideia demasiado individualista, atreita a considerar o cidadão só, diante do Estado, independentemente de toda e qualquer mediação cultural, religiosa ou étnica.
Já Alain Tourraine, na sua obra Iguais e diferentes, podemos viver juntos tratava esta deriva na cultura liberal ou iluminista, entre uma concepção individualista dos direitos humanos e o multiculturalismo que colocava em causa essa concepção. Sem dar uma resposta conclusiva, pareceu-me que o estimado autor, conquanto defendesse o modelo liberal clássico, não via como enquadrar o emergir das culturas e dos direitos culturais.
Da mesma deriva parece dar-se conta Cardoso Rosas, que analisa dois modelos, um mais clássico, o de Rawls, e outro mais multiculturalista, o de Kymlicka, inclinando-se também para o modelo clássico, embora reconhecendo a necessidade de fazer concessões.
Há todavia uma outra reflexão que se inclina a pensar que a relação entre os direitos humanos e a Filosofia liberal não é assim tão linear e pensa que as mediações culturais e religiosas, como espaço de identificação, devem ter uma maior visibilidade. Já há alguns anos, um autor tão importante como W. Oelmuller reparava que o Iluminismo dera muito pouca importância às mediações culturais e julgava transformar a realidade pela força do Direito, o que não era assim tão evidente.
Claro está que por detrás das elucubrações de alguns dos nossos ditos "fazedores de opinião", pouco ao corrente destas reflexões, está a simples consideração do facto religioso como residual e pouco importante para a identidade cultural dos povos, coisa de resto corrente também em alguns comentadores católicos pouco avisados do fenómeno cultural.
Todavia a pretendida democratização do Iraque pelos americanos coloca, neste âmbito, um mundo de questões, não assim tão abstractas, mas bem mais concretas. E entre elas as seguintes: como vão os americanos lidar com o fenómeno religioso islâmico, resistente a todas as autoridades, após a era colonial? Que partidos vão criar no meio duma população que tem mais o conceito de tribo ou de etnia que o de cidadania, como a entende o liberalismo? Que federalismo, se se pensa nisso, num mundo dominado por chiitas, curdos e sunitas, para além da importante comunidade católica?
Mais do que considerações teóricas, os problemas colocados pelo multiculturaalismo no mundo árabe e na Europa (veja-se o emergente caso da França) reclamam decisões práticas.
Perante estas decisões, não será descabido afirmar que o modelo da cidadania proposto pela Revolução liberal parece demasiado estreito para enquadrar a vida emergente em muitas sociedades.