[ Cultura ]



    Memória

    Em memória de quem merece nunca ser esquecido


    Mons. Moreira das Neves: O Padre, o Poeta, o Jornalista

    O Padre Francisco Moreira das Neves nasceu em Gandra, concelho de Paredes, em 18 de Novembro de 1906, num berço humilde, que Deus abençoou com dez filhos, entre os quais outro sacerdote e poeta.
    Frequentou o seminário do Porto, onde concluiu o curso de Teologia com brilhantes classificações e ainda muito jovem. Foi ordenado sacerdote a 25 de maio de 1929 e celebrou a primeira missa no dia 29 do mesmo mês.
    O prelado diocesano de então, D. António Meireles, fez do jovem sacerdote o seu fâmulo e secretário do Seminário Maior. Mas ele não nascera para burocrata. Logo depois foi nomeado pároco da freguesia Milhundos e, decorrido um ano, ia para Mosteiró (Vila do Conde).
    Ali exerceu acção pastoral de larga projecção na diocese e no Norte do País. Fundou o Patronato de Santa Rita de Cássia e foi apóstolo incansável da Cruzada Eucarística das Crianças, tendo Portugal inteiro cantado vários versos que ele escreveu para esses pequeninos do <>. Publica então a monografia S. Gonçalo de Mosteiró.
    Em 1934, conquista a admiração no campo das letras, espalhando os sonetos do Sonho Azul, e um ano depois lança a público um precioso trabalho bibliográfico sobre o poeta António Correia de Oliveira.
    Na Semana Litúrgica de Lisboa, em 1932, apresenta uma tese sobre renovação litúrgica, altamente louvada nesse Congresso Liturgia dos Mortos - Etnografia e Crítica.
    Em 1934, foi convidado para o lugar de Chefe de Redacção do diário católico Novidades, em substituição de Mons. Lopes da Cruz, que se dedicara em exclusivo à fundação da Rádio Renascença. Aí criara o suplemento "Letras e Artes" (continuação da antiga "Página Literária"), que se tornaria numa das melhores folhas culturais que a Imprensa portuguesa viria a conhecer.
    Foi colaborador da Rádio Renascença, da Emissora Nacional (onde realizou com Adolfo Simões Muller e Artur Bivar os primeiros programas infantis), e até da Radiotelevisão Portuguesa, de que foi membro do Conselho de Programas, além de palestrante em temas de cultura religiosa e literária.
    Para os garotos que faziam a venda apregoada dos jornais, fundou, com D. Maria Luísa Ressano Garcia, a obra do Ardina. Foi também director nacional da Obra dos Leprosos e representante do Cardeal Patriarca no Conselho Superior da Cruz Vermelha Portuguesa.
    Foi poeta nascido do povo e que o povo tomou para si. Algumas das suas poesias andam por aí espalhadas como produções de autor desconhecido, perdidas no mundo do anonimato, tanto em livros como em revistas e jornais, mas especialmente em umbrais de portões, azulejos artísticos e pratos e cerâmicas de ornamento. Outras das suas obras mereceram ser musicadas, quer em canções ligeiras (como o fado), quer em cantatas e hinos religiosos, por alguns dos nossos melhores compositores.
    Haja em vista pelo particular apreço de maestros compositores, executantes e público os poemas que escreveu para serem musicados ao estilo de cantatas: As Sete Palavras de Nossa Senhora, D. Sílvia Cardoso, Mons. Brás e S. João de Deus.
    Alguns dos seus poemas, talvez mesmo dos melhores que a sua pena sempre inspirada produziu, estão ainda inéditos, tudo fazendo crer que, na celebração do seu 1º centenário em 2006, possam vir a público, como são Variações sobre a Saudade e Haikais, em verso, e Almas descobertas, bem como O Perfil de um Leigo, em prosa, e outras.
    Os seus méritos de Homem, Sacerdote e escritor foram justamente reconhecidos e louvados através de várias comendas e títulos. Pela Santa Sé foi comendador da Ordem do Santo Sepulcro e pelo Governo Português comendador da Ordem Militar de Cristo. Foi emérito da Academia Mondiale degli Artisti i Professionisti de Roma. Em 1954, por ocasião das suas Bodas de Prata Sacerdotais, Pio XII distinguiu-o com o título de Monsenhor na categoria de Camareiro Secreto de Sua Santidade.
    Deixou o seu nome ligado a diversas iniciativas: a dos Cruzeiros da Independência (restauração dos antigos e implantação de novos); a das Alminhas, nichos e retábulos dispersos e perdidos por caminhos do País; a dos Moínhos de Vento, com fundação da respectiva associação de amigos, juntamente com Vitorino Nemésio e outros; e a dos Escanções, de cuja associação foi o grande animador cultural, historiando diversos temas afins como o do vinho e das tabernas.
    Após o 25 de Abril de 1974, e por força de uma decisão do Episcopado até hoje nunca suficientemente explicada muito menos entendida, foi suspenso o velho jornal Novidades (Diário Católico), de cuja redacção Moreira das Neves foi chefe durante cinquenta anos, bem como a sua editora de bem consagrada tradição, a União Gráfica (à rua de Santa Marta), tendo, todavia, Moreira das Neves continuado a "sobreviver" num dos velhos sótãos de casa, até transitar para a biblioteca da Igreja do Sagrado Coração de Jesus.
    Reformado já como jornalista, a sua pena, porém, não descansou, e trabalhou ainda em vários escritos, como redigiu ainda prosas e poemas para diversas publicações.
    Em Abril de 1984 foi alvo de uma homenagem nacional pelos seus cinquenta anos de jornalismo, promovida por um grupo de amigos e admiradores, a que presidiu o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, e que contou com a participação de ilustres membros da Igreja e da Cultura Portuguesa, tendo sido distinguido pelo Chefe de Estado com a comenda da Ordem Militar da Torre Espada, e tendo já também recebido a Medalha de ouro da cidade de Lisboa.
    Para ser quem foi, nunca precisou Moreira das Neves de queimar incenso aos ídolos de qualquer academia, nem de se entrouxar com cânones de qualquer escola. Mereceu, no entanto, a estima e o apreço de todos os académicos; e entrava, como se em sua casa entrasse, nas salas de qualquer academia.
    Ele tinha a exacta noção dos valores essenciais, e conhecia de cór "a filosofia dos limites", que aprendera num culto de muito pessoal e reconhecida paixão naquele que era para ele um ídolo da sua fé e da sua cultura, S. Agostinho, de cujas obras era mui devoto coleccionador.
    Para uma muito apreciada colecção de pequenos volunes-antologia, editada pela Bertrand em 1945, escreveu Moreira das Neves o seu "Cem Páginas" sobre S. Agostinho, com prefácio-introdução e comentários à antologia de textos do Santo Doutor.
    Se fosse vivo, sua presença e sua voz tornar-se-iam indispensáveis nas comemorações que estão em curso para se celebrar o XVIII centenário da conversão ao Cristianismo daquele que viria a ser, como ainda se mantém, a maior autoridade teológica.
    Chamou-lhe Duchesne "o incomparável". Originário da África distante, teve S. Agostinho uma força irradiante que o projectou sobre toda a cristandade. E não só.
    E Moreira das Neves sabia escolher aqueles que lhe poderiam servir de padrão no culto dos autênticos valores da vida, e que o tempo não desgasta.
    Dele já se disse que foi "uma pena que nunca se cansou, nas mãos de um homem que nunca descansou".
    Poeta e jornalista, a tempo inteiro e de corpo e alma, Moreira das Neves definia os dois neste dito muito a seu jeito: "O poeta é um jornalista que trabalha no silêncio; o jornalista é um poeta que tem de trabalhar de qualquer maneira".
    Faleceu em Lisboa a 31 de Março de 1992, e após as exéquias solenes na capital, seguiu para sepultura no cemitério da Gandra, sua terra natal. Aí repousa à sombra do epitáfio que ele próprio escreveu:

    - Aqui jaz quem nunca foi
    Milionário nem herói,
    Mas quis ser em alegria,
    Apenas, em dor e amor,
    Cantor de Nosso Senhor,
    Poeta da Eucaristia!

    Manuel Ferreira da Silva