J. M. Da Cruz Pontes *
A epistolografia dos escritores que ganham lugar na história literária pode ter interesse por duas vias. Ou porque são essas cartas em si mesmas elegância estilística ou, mesmo que assim não seja, constituem elemento valioso para melhor conhecimento da vida e até da obra de um poeta, um romancista, um dramaturgo. André Rocha, quem primeiro estudou A epistolografia em Portugal ( 1ª. ed. 1965; 2ª. ed. 1985), observa: "Há grandes artistas que são epistológrafos medíocres, há outros que são, cumulativamente, excelentes carteadores".
António Nobre e Eça encontraram em Guilherme de Castilho empenhado pesquisador e editor de suas cartas, a que se juntaram, quanto ao segundo, os cuidados de Aníbal Pinto de Castro, Isabel de Faria e Albuquerque, Beatriz Berrini; e ainda Alfredo Campos Matos nos deu, organizada, a correspondência de Eça e de Emília de Castro, desde o noivado. As Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da Presença com edição e estudo de Enrico Martines são imprescindíveis para o conhecimento do modernismo surgido em Coimbra, pelos anos vinte.
Camilo não acolheu o conselho de António Feliciano de Csatilho para que guardasse em um copiador as cartas que escrevia. Por isso se extraviaram umas ou se mantêm fora do alcance dos camilianistas algumas outras de cuja existência há notícia, para além das que não fugiram à perspicácia do devotado realizador das suas Obras Completas, Justino Mendes de Almeida. Acrescentou às já conhecidas muitas outras que enchem mais de milhar de páginas do décimo oitavo e último volume daquela edição.
José Régio frequentemente se pranteia do atraso em que deixa o correio, como no primeiro parágrafo desta carta de 13 de Março de 1957, inédita - "Senhora Dona Cândida e minha boa Amiga: o meu silêncio de meses, assim como a demora destas linhas, nada significam senão que tenho sempre a vida muito ocupada e preocupada. Escrevo muitas cartas (e outras coisas) que nada me interessaria escrever - mas tem de ser! - e deixo de escrever aquelas que me seriam gratas. A engrenagem da vida leva a isto. Apesar de tudo chegam ao milhar as missivas ao mais assíduo interlocutor, Alberto de Serpa. São mais de trezentas as dirigidas a Adolfo Casais Monteiro e a Luís Amaro, duas centenas para João Maria, o irmão mais novo, e um pouco mais as enviadas aos pais. Estas últimas foram reunidas com introdução e notas por António Ventura, José Régio - Correspondência familiar. Cartas a seus pais (1997). O mesmo amigo juntara antes a correspondência de Régio e António Sérgio (1994), depois de Mércia de Sena Ter organizado a de Jorge de Sena / José Régio (1986) e de João Francisco Marques haver compilado toda a endereçada a Flávio Gonçalves (1989).
Régio transcreveu no Diário Íntimo algumas cartas, que passaram para o volume de Correspondência das Obras Escolhidas do Círculo de Leitores (1994). A fidelidade do traslado é rigorosa, mas ao menos em um caso, Régio se equivocou ao registar como destinada a Moreira das Neves aquela que nos enviou. O lapso tem fácil explicação. Moreira das Neves publicara em 1942 o livro Inquietação e Presença sobre Régio e Miguel de Sá e Melo. (A Senhora Dona Cândida, da carta que acima transcrevemos, é sua Mãe). O interesse que este último nos despertou, pelo seu relacionamento com Régio, que pela primeira vez visitámos em Vila do Conde, procurando-o na ourivesaria do Pai, o senhor José Maria Pereira, naquele mesmo ano, levou-nos a passar uma semana do verão de 1946 na Casa de Sá em Vizela.
À luz de candeeiro, pela noite em diante, fomos lendo as cartas que Miguel diariamente expedia de Coimbra para a Mãe. Assim escrevemos, com o entusiasmo dos vinte anos, na revista Cenáculo, de Braga, o que chamámos "Um encontro verdadeiro com Miguel de Sá e Malo".
Na revista Estudos do CADC de Coimbra publicámos no mesmo ano o artigo "José Régio às portas de Deus" (Junho de 1946) e, no número seguinte, uma nota intitulada "Uma carta inédita de Miguel de Sá e Melo a José Régio", dando a explicação necessária.
Havíamos pedido a Régio uma carta do Miguel para as páginas dos Estudos. Entregou-nos as duas inéditas (a terceira e última é a que transcreve na "Resposta a Miguel de Sá e Melo", redigida para o In Memoriam que os Estudos dedicaram ao consócio prematuramente falecido, mas que Moreira das Neves obtivera para o seu livro através da Mãe do Miguel, a quem Régio prometera outro depoimento seu para o In Memoriam). Escolheríamos aquela que mais aprouvesse. Régio desejava manter uma delas inédita, afim de poder dar algum contributo interessante em eventual realização de um volume com correspondência epistolar do Miguel.
À Mãe de Sá e Melo escreveu José Régio 33 cartas, em algumas delas combinando encontro que não chegou a surgir. De entre elas, escolhemos dezassete, por ocasião de uma visita a Dona Cândida, em Lisboa, em 1971, pedindo fotocópia de elas e autorização para as utilizar.
Em carta de 21 de Setembro de 1942 para Dona Cândida de Sá e Melo, escreve Régio: "A propósito me ocorre que me encarregaram dum assunto em que talvez a Senhora Dona Cândida pudesse valer-me, se não é abuso meu dispor assim da sua benevolência: É caso que há um rapazito aqui na Póvoa, seminarista, que me mostrou muita vontade de possuir um exemplar do ensaio de Miguel: 'O aceno de Deus'. Diz-me ele Ter escrito para uma livraria do Porto, e terem-lhe respondido que o ensaio estava esgotado. Será verdade? Ou a quem poderei eu escrever (pois tinha vontade de servir o meu jovem amigo) para conseguir um exemplar? Talvez aos rapazes dos Estudos?. Em Março do ano seguinte, é de Potalegre que relembra: "Quanto ao Aceno de Deus, o rapaz que mo pediu com tanto interesse tem estado sempre à sua espera, coitado! Tudo por culpa minha, e das circunstâncias que atrás expus. Muito agradeceria, portanto, se a Senhora Dona Cândida mo pudesse conseguir".
É este exemplar do ensaio de Miguel de Sá e Melo, assim alcançado, aquele que possuo. A atenção de Régio deu ao desejo manifestado pelo jovem adolescente que o visitava nas férias, muitas vezes deambulando pelas ruas de Vila do Conde para acabar no seu escritório, não é senão um dos vários episódios nos quais testemunhámos em que conta tinha a pessoa humana de alguém que se lhe aproximava - mesmo quando se tratava de audacioso estudante com quem conversava e mesmo discutia.
O lapso de Régio, trocando pelo nome de Moreira das Neves o do destinatário da carta que acabava de escrever e trasladava para o Diário, fica explicado por esta associação de ambos com Miguel de Sá e Melo.
As referências da carta bastavam, porém, para identificar o verdadeiro interlocutor. O livro sobre Pedro Hispano Portugalense era a nossa dissertação de doutoramento; o de Jean Guitton é tradução revista para a Livraria Tavares Martins e para a qual redigimos alguns parágrafos de apresentação. Finalmente, não poderia ser com Moreira das Neves mas com o amigo poveiro que o Acaso proporcionaria "algum encontro no Diana-Bar".
Ao deparar-se-nos no volume de Correspondência a transcrição extraída do Diário Íntimo com o lapso sobre o verdadeiro destinatário dela, não é isso que faz reflectir. Mas antes leva uma vez mais a meditar na grandeza de alma de quem, entre solicitações e tarefas seguramente gratificantes, pára, a fim de dirigir-se àquele que, tendo ousado procurá-lo aos dezassete anos, não ficou senão surpreso ao receber, dois decénios mais tarde, um sobrescrito endereçado de Portalegre para Coimbra com aquela caligrafia tão inconfundível. E, tendo redigido ambas as faces da folha epistolar, quis guardar-lhe a cópia...
* Prof. da Universidade de Coimbra