Ferreira De Brito
Ser saudosista, sobretudo da infância, não significa que se perca o espírito crítico e se confunda bruma longínqua com ríspida clarividência de idade madura. Se a infância não é tudo, como pretende a teoria freudiana, a verdade é que ela é quase tudo. Nela se formam e corporizam os sabores, os odores, os valores. Nela se condensam e se escondem os mitos e os ritos. Nela se desenvolvem os códigos genéticos que a determinam, mas nela mergulham alguns dos sonhos que a idade proveta ressuscita para salvaguarda do seu equilíbrio psíquico, que passa necessariamente pela salvaguarda do onírico.
Para mim, que não renuncio no meio da prosa aturdida deste mexe-que-mexe da vida, com todas as suas condições e contradições, saltos e sobressaltos, à maravilhosa poesia da infância, o Compasso é um dos encantos da infância que me repousa a alma e me dá calma nos ziguezagues apertados da minha caminhada existencial. Menino, eu não percebia por que tapavam os santos com pano roxo na Quaresma e os destapavam no domingo de Páscoa. Mais tarde, haveria de perceber que nesse dia todos os olhos deviam estar fixados apenas na imagem esplendorosa do Ressuscitado.
Dou também comigo ainda hoje a cantarolar a música da minha igreja, arrastada, muito arrastada, (e tanto mais bonita quanto arrastada!), contra todos os cânones rítmicos: "Aleluia e aleluia, já Cristo ressuscitou. Aleluia e aleluia, de chorar a Mãe deixou". Faz vir as lágrimas aos olhos, então não faz? Uma deliciosa fruição melódica de um hino ao Divino! Não me venham com a história de que isto é pieguice da minha parte. Pois seja! Mas que bole na alma (bem lá por dentro, confesso), lá isso bole. Vibram em mim todos os sinos repicando de alegria; tilintam nos meus ouvidos as delicadas campainhas; rebentam estrondosos os foguetes; salpicam-nos as gotas de água benta da caldeira, que, uma vez esgotada, se reabastece na fonte mais próxima; param as gentes nos caminhos para beijar a cruz engalanada; tilintam moedas na bandeja. A natureza veste-se a preceito, glicínias em cachos brancos e lilases, camélias vermelhas, para participar na apoteose pascal.
Misturando o sagrado com o profano, deixem-me relembrar numa penada os olores e os sabores da Páscoa da minha infância. Há lá no mundo inteiro e arredores, alguma coisa mais gostosa do que o cordeiro pascal assado no forno de lenha pela minha mãe e o bazulaque feito com feijão branco e miúdos do anho? Não, não há nem haverá.
Repiquem de novo na minha sensibilidade todas as campainhas pascais da infância feliz na minha aldeia
Hossana e Aleluia são as palavras que mais energia espiritual geram em mim.