É a este nível [o da originalidade da linguagem poética] que se pode suscitar a invulgar problemática da poética de Moreira das Neves. Poeta, orador, crítico, jornalista, muito estimado e criticado na sempre tensa relação da poesia e da ideologia, ele constituiu-se um caso à parte na história literária do seu tempo. Ignorou presencistas, embora num poema, se refira, de passagem, a José Régio e tenha publicado um estudo intitulado Inquietação e Presença (Miguel de Sá e Melo e o movimento modernista (Leiria, 1942), olvidou todos os outros grandes movimentos europeus de abertura a um novo conceito de poesia e de poética. Imperturbável na sua postura fixista, isolou-se no seu espaço poético pela expressão lírica de cunho popular, com tendências de intemporalidade, mais catequética do que mística, mais repetitiva do que original. E, apesar da sua inconfessada inocência, alguns dos muitos poemas seus têm marcas que a História, sempre plural e abrangente, não deixa de provocar até nos seus agentes mais inodestos. Eis, a título de exemplo, uma passagem ilustrativa num contexto laudatório da sua extensa, diríamos mesmo, inesgotável, ladainha de títulos da Virgem:
A vida tem como a Rússia,
negras cortinas de ferro.
Senhora dos Prisioneiros,
Livrai os presos do erro.
Entrevê-se ao longe a «cortina de ferro» com toda a sua problemática política e religiosa.
Ora, esta corrente mariana, sempre mais ou menos decalcada e repetitiva, às vezes monótona pelo seu aspecto litânico, atravessou incólume séculos e milénios e manteve-se ininterruptamente viva na História da Literatura e da Cultura Portuguesas, desde o berço da nacionalidade, passando pelo medievalismo, classicismo, pelo barroco, pelo romantismo, enquanto ela é a expressão da alma alimentada por esta corrente de espiritualidade, que brotou generosa em grandes poetas do século XIX como João de Deus, Castilho, Tomás Ribeiro, Soares de Passos António Nobre, António Correia de Oliveira, Augusto Gil, Eugénio de Castro e tantos mais. O culto mariano não é pois um anacronismo depreciativo ou uma amostra poética necessariamente fora do seu tempo, valendo o que vale. Em todos os casos, o que atraía esses poetas era a excelência e a sublimação da mulher ideal. A poesia de Moreira das Neves é, sob este ângulo de observação, bem particular pelo fervor religioso que ele imprimiu aos seus textos. (Veja-se Mário Martins, in Dicionário de Literatura Portuguesa, de Jacinto do Prado Coelho, vol. II, p.739.). A sua poesia, num misto de intencionalidade catequética, litúrgica e apologética, sem pretensões à escalada mística, parece enfermar de uma falta de inserção no relógio temporal em curso convulso, que caracteriza as grandes tensões poéticas, religiosas e ideológicas do nosso tempo. Numa leitura de superficie, parece tratar-se duma poética demasiado ingénua e cândida, mas, numa descodificação mais apurada, sente-se ou pressente-se, que, subtilmente, ela se vai infiltrando no âmago do ser religioso, que se deixe oniricamente embalar e seduzir. É uma tentativa cândida de assumir o trágico religioso como sendo essencial, mas sublimável, nos jogos da vida.