Lembrai-vos de nós, Senhor, no vosso Reino!
Depois da carta aos Gálatas dos últimos quatro domingos, é-nos agora proposta a que Paulo escreveu aos seus irmãos na fé em Colossos. Paulo encontrava-se na prisão (cf. Cl 4, 3.10.18). Influenciados pelas ideias e filosofias da época, os habitantes de Colossos acreditavam que o universo era fatidicamente dominado por espíritos maus. Ora, esta não é a visão da fé, e para contrariar esta mundividência Paulo descreve e fundamenta o outro tipo de destino dos cristãos ao qual estão chamados.
Quem reina e governa o mundo é o Ungido de Deus. Mas que rei é este? Olhemos então o Evangelho. Os israelitas da 1ª leitura e o salmista esperavam (ainda esperam, e é isso que nos distingue) um outro David, um outro restaurador de Israel e da sua magnificência (Sl 72, 9-11). Não é então de estranhar que na cena do Calvário fosse generalizado o sentimento de desilusão. Todos estão desiludidos: o povo simples, os chefes desse povo, e os soldados. O desencanto é tão grande que já dá até para o gozo. Os soldados podiam fazer troça à vontade, pois não havia medo de retaliações.
Centrámos a nossa reflexão na cena real e paradigmática do Calvário. Contemplemos o Crucificado e vejamos o que dizem os ladrões, e porque o dizem. O dito «bom ladrão» (atenção que o evangelho não aprova o roubo!) não pediu nada. O outro pediu um rei que lhe desse aquilo que ele não conseguia alcançar - o perdão e a libertação. Queria assim ver pervertida a sentença justa que lhe calhou em sorte, uma subversão total da situação. O mau ladrão continuava a roubar, mesmo nos seus momentos finais, a justiça e a reparação possível por tudo aquilo que cometeu. Queria, mesmo aí, roubar seriedade à vida.
O bom ladrão pediu apenas o que podia, o alcançável - uma memória. O bom ladrão como que fez chantagem com Jesus: lembra-te que sou um pobre condenado, mas que também fui amado por Deus e estou na mesma situação. Até aqui Jesus permaneceu calado. Limitou-se a ouvir, mas não de longe.
Jesus faz, como dizia D. António Ferreira Gomes, uma teologia crucificada em vez do erro da teologia moderna da cruz, e mostrou que o madeiro, termo último da encarnação, é a amostra suprema do amor de Deus. Na verdade, o bom ladrão pediu porque tinha alguém que o ouvia. E tal só é possível na solidariedade, numa encarnação definitiva e martirial até à situação de indigência suprema do outro capaz de o entender. Jesus só compreendeu o pedido porque estava na mesma condição, solidarizou-se com aquele pobre homem até ao fim.
O bom ladrão viu até que ponto Deus Se permitia ir ao encontro do homem! Por isso, tinha confiança, podia pedir-lhe para fazer memória. Sentiu a compaixão do Deus que tudo fez para o salvar. Somente um crucificado poderia salvar outro. Deus fala encarnando no Filho o seu amor total, não utiliza uma linguagem descaradamente de cruzada ou reivindicadora de direitos e privilégios, mas seduz e salva pela doação de auto-despojamento. Ao ver que o bom ladrão reconheceu que tinha diante o seu Deus, Jesus "canonizou-o" automaticamente, sem processo, sem escrutínio ou aclamação, porque passou a reinar no coração daquele condenado.
Jesus no patíbulo ouviu primeiro e por isso foi julgado depois pelo próprio bom ladrão. Na verdade, na cruz não é Deus a julgar o mundo mas somos nós a julgar aquilo que Ele fez por nós, até onde Deus é capaz de ir, tal como o bom ladrão. Era efectivamente de um rei assim, que se compadecesse das nossas misérias, que precisávamos. Um rei que governa e chega ao poder e exerce esse mesmo poder corre sempre o risco de ser odiado ou de causar dano e pressão a alguns dos seus súbditos. Nessa altura deixa de reinar para passar a ser visto como rei opressor, soberano ou ditador. É precisamente este caminho que Deus não escolheu para o Seu próprio Primogénito: pelo auto-aniquilamento total solidário e martirial em favor do mundo, o Filho do Homem não tem medo que alguém reclame da sua governação, de causar sofrimento a alguém. Antes, sofre por eles, não deixa vítimas ou despojos atrás de Si.
Aqui está o paradoxo (que deixa de o ser) do Crucificado, do Rei. É Senhor porque não se impõe, nós julgamo-Lo e declaramo-Lo como tal, não dá nem deixa motivo algum de queixume a quem quer que seja. Assim se compreende que Jesus reine servindo o homem e a humanidade. A Igreja tornar-se-á rainha, reinará na consciência do homem moderno servindo-o. Os crucificados do nosso tempo isso dela esperam, uma Igreja crucificada.