DOMINGO II DA PÁSCOA - ANO B - 30 DE ABRIL DE 2000
Meu Senhor e meu Deus!
Evangelho: o Primeiro Dia
Como todo o 4º Evangelho, a nossa perícope prima pela «densidade».
1. A Presença absolutamente nova do Ressuscitado, sem nada de comum com as leis físicas que regem este mundo. Deixa-se ver, deixa de se ver. Mas há continuidade real entre o Crucificado e o Ressuscitado: «mostrou-lhes as mãos e o lado».
2. Os frutos da Páscoa de Jesus: a paz e a alegria. Os discípulos passam do medo à alegria. O Ressuscitado traz o dom da Paz: o shalôm bíblico é a plenitude dos bens da salvação. Já os discursos depois da Ceia o anunciavam: a tristeza da mulher que vai dar à luz e a alegria pelo novo nascimento: «deixo-vos a paz...».
3. A Missão universal: nasce da Páscoa e tem a fonte no seio da Trindade: «como o Pai Me enviou...».
4. O dom do Espírito. Tem-se chamado a este texto o «Pentecostes joânico»; mas a perspectiva é diferente de Act 2. O sopro do Ressuscitado evoca o «espírito de Deus» que pairava sobre as águas, nos primórdios da Criação (Gen 1, 1); em Jesus ressuscitado, está criado o Mundo novo, a Humanidade nova, cuja «alma» é o Espírito Santo. Desde o princípio do Evangelho se aponta para este momento: em 1, 32s, o Espírito desceu sobre Jesus, no baptismo, e permaneceu nele; 7, 39, fala do Espírito que haviam de receber os crentes, quando Jesus fosse glorificado; em 19, 30, Jesus entrega o Espírito (é lamentável que a tradução oficial, desconhecendo o itinerário evangélico, tenha um simples «expirou», empobrecendo o texto joânico); agora, pode ser comunicado, porque chegou a Hora da glorificação de Jesus. Na tarde do Primeiro Dia, o Ressuscitado dá o Espírito da nova Criação. O Espírito faz dos discípulos, além de primícias da nova humanidade, as testemunhas autênticas do poder salvífico do Acontecimento pascal que vai até à remissão dos pecados. Conferindo o poder de os perdoar, o Cordeiro desempenha a missão de tirar o pecado do mundo, anunciada em 1, 29.
5. João personaliza em Tomé o tema da dúvida que, nos Sinópticos, é mais geral. Não foi à primeira que os discípulos chegaram à fé na Ressurreição. Act 1, 3 explicita «ao longo de 40 dias». Preparando a cena do reconhecimento, o caso de Tomé introduz o regime da Fé que vai entrar em vigor. O tempo «fundacional» acabou; o crente crê, apoiado no testemunho dos que viram o Ressuscitado e que Deus estabeleceu como testemunhas (Act 10, 41). Significativamente, a mais alta confissão de fé cristológica - «meu Senhor e meu Deus» - vem na boca do discípulo que duvidara. Tomé serve de passagem para o «tempo da Igreja», que é o tempo da fé: crer sem ter visto.
6. «Nasce» o Domingo! O «Primeiro Dia da semana e «oito dias depois»: é o ritmo marcado pelo Ressuscitado para o encontro com os seus.
7. O 1º epílogo do 4º evangelho expõe o regime da Fé. O Discípulo amado dá o seu testemunho, para justificar e aprofundar a fé dos crentes a braços com a provação. A profissão de fé messiânica («Cristo») tem de subir até à filiação divina, no sentido mais forte. Só esta fé conduz à vida eterna. Todo o Evangelho convergia para a intimidade das relações entre o Filho e o Pai.
Segunda Leitura: o tempo da fé
O interesse pela fé em Jesus Messias e Filho de Deus continua. Este ano (B), a 2ª leitura vem da 1ª Carta de João. O Autor, discípulo e continuador do Discípulo amado, quer inculcar à comunidade o acolhimento a fazer ao 4º Evangelho: num sentido rigorosamente ortodoxo, perante tendências divisionistas. Despontam as primeiras heresias: docetismo, gnosticismo. A divindade de Jesus e a realidade da Incarnação são postas em causa. A «gnose» vai elaborar sistemas, descurando o essencial do cristianismo, os mandamentos, o amor fraterno.
Nesta perícope, o Autor insiste no realismo da fé: obediência aos mandamentos; e na fé em Jesus, o Verbo incarnado. A referência à água e ao sangue acentua o realismo da Incarnação: Jesus foi investido Messias no baptismo, e não deixou de o ser quando derramou o sangue na Cruz. A água e o sangue que jorraram do Lado do Crucificado são as verdadeiras fontes da salvação que, agora, se encontram no baptismo e na eucaristia. A menção do Espírito prolonga o interesse do 4º Evangelho pelo Espírito Santo que «dará testemunho de Mim», «vos conduzirá à verdade total», etc.
Sentem-se os problemas da Comunidade: dificuldade de crer, para os da 2ª e 3ª gerações cristãs; rupturas, pela deserção de elementos que propunham interpretações distorcidas do 4º Evangelho.
Primeira Leitura; A comunidade pascal
Cada ano, lemos, neste Domingo, um dos «sumários» em que os Actos apresentam a Comunidade ideal, nascida da Páscoa. O acento está na «koinônía» dos crentes. A fé que lhes é comum é o fundamento da sua unidade: «um só coração e uma só alma». Inútil procurar distinção entre «coração» e «alma», no plano da antropologia. A «alma» vem do helenismo; o «coração» dá colorido bíblico ao que podia ser o simples ideal grego da amizade: aqui, há mais!
A comunhão de bens foi a maneira prática de combater a miséria. Como sistema económico, não iria longe; mas como vivência radical das bem-aventuranças, como Lucas as entende - viver à maneira de Jesus - era mesmo assim. A prática não foi tão geral como parece; porque, a seguir, cita-se o caso de Barnabé, como exemplar. Lucas escreve a 50-60 anos de distância; já tinha passado a «era de oiro» de Paulo que, juntamente com as «colunas» encontrou outros meios para socorrer os «santos»de Jerusalém (Gl 2, 10).
No meio do quadro, Lucas introduz um elemento que lhe é particularmente querido: o testemunho dos Apóstolos à Ressurreição de Jesus, deixando-nos perante o dinamismo duma Igreja verdadeiramente pascal: na fé e no testemunho.
DOMINGO III DA PÁSCOA - ANO B - 7 DE MAIO DE 2000
Nós Somos Testemunhas: Cristo Ressuscitou!
Evangelho: O Dia Maior...
O «Dia de Páscoa», em Lc, vai da Ressurreição à Ascensão, e não chega a fechar... Não façamos concordismo histórico, estabelecendo sequência cronológica com as aparições do 2º Domingo! É a mesma Tradição de base que Lc e Jo desenvolvem na sua perspectiva própria.
As aparições do Ressuscitado aos Discípulos fazem deles as Testemunhas qualificadas e os responsáveis pela Missão.
Neste quadro magistral, Lc começa pelo reconhecimento. Para Gregos, alérgicos à ideia de ressurreição (cf. 1 Cor 15 e Paulo em Atenas, Act 17), Lc insiste no realismo do Corpo ressuscitado: Jesus vai ao ponto de comer na presença deles! João não foi tão longe, com Tomé. Inútil especular sobre o caso; como diz B. Rigaux, o Ressuscitado sabe fazer a sua própria apologética!
Depois de reconhecimento, a Missão.
O discurso do Ressuscitado condensa a catequese pascal que os Actos vão retomar:
1. Referência às Escrituras: o tempo entre a Páscoa e a Ascensão (Act 1, 3) é o tempo da iluminação. O Ressuscitado abre o espírito dos discípulos ao entendimento das Escrituras. Aquele que as cumpriu é que as faz compreender. A chave da leitura cristã da Bíblia é o Senhor Ressuscitado. Do seu lado, as Escrituras é que permitem entender a Morte e a Ressurreição de Jesus. É o Desígnio de Deus. Por isso, pode dizer-se: «era preciso que...».
2. Delas consta ainda a proclamação da conversão para a remissão dos pecados, no mais aberto universalismo. É de acentuar este lugar das Escrituras.
3. E este é o testemunho confiado aos discípulos (à Igreja). Os Actos serão a realização do programa do Ressuscitado.
1ª Leitura: Um discurso missionário
O que foi dito pelo Ressuscitado é, agora, proclamado por Pedro.
Os discursos dos Act não são «resumo» de qualquer documentação anterior; são composições muito bem elaboradas por Lucas. Conhecendo, por Tradição, as ideias básicas da Pregação apostólica, compõe uma catequese pascal que oferece à Igreja dos anos 80.
Os «discursos missionários» anunciam a Mensagem cristã a um auditório que ainda a não acolheu. Obedecem ao mesmo esquema de base: exórdio, ministério terrestre de Jesus, crucifixão, ressurreição e sua significação messiânica, e conclusão.
A nossa perícope toma o discurso no 3º tempo: a crucifixão, apresentada em forma de acusação, como obra dos habitantes de Jerusalém e seus chefes. Em contraste com este acto criminoso, vem a ressurreição, apresentada como Acto de Deus.
A afirmação da Ressurreição é seguida da referência aos que receberam o mandato de ser Testemunhas (este sentido de «testemunhas» é próprio de Lucas).
Segue-se a iluminação bíblica, que também serve de nota apologética: a morte de Jesus está conforme o Desígnio de Deus, consignado nas Escrituras. Tema particularmente querido a Lucas, bem como o da inocência de Jesus, uma das suas preocupações na narrativa da Paixão (Lc 22-23).
A conclusão normal dos «discursos missionários» é a exortação ao arrependimento (ou à fé), com a promessa da remissão dos pecados. O discurso-programa do Ressuscitado está a cumprir-se fielmente.
Seria interessante comparar com este esquema constante os esquemas dos nossos próprios discursos em igreja...
2ª Leitura: A Confissão do Crente
Também a «Comunidade do Discípulo amado» é feita de membros pecadores, como o Autor insiste, desde 1, 7. Mas para levar a uma atitude de confiança, baseada na fé em Jesus. Ele é o nosso «Paracleto»; intercede por nós junto do Pai. (No 4º Evangelho, o Paracleto é o Espírito Santo, noutra perspectiva). Jesus é o Justo: não se trata da perfeição moral de Jesus, mas da sua obra redentora, que lhe dá o poder de justificar. Ele é a Vítima de expiação que se ofereceu em sacrifício pelos pecados de todo o mundo.
Pastor solícito, o Autor dirige-se aos «meus filhinhos». Sentem-se as tendências gnosticizantes que atribuem a salvação mais a uma «gnose» do que à Pessoa histórica de Jesus.
O «conhecimento de Deus», em sentido bíblico, não é um saber especulativo, mas um relacionamento de amor e comunhão. E o Autor diz o que implica este conhecimento. Perante as tendências gnosticizantes, que se vão embrenhar em complicados sistemas e teorias, a Comunidade é chamada ao realismo da Fé: a fidelidade aos mandamentos, concretizados no amor fraterno. Aqui, não há perigo de evasão para as «esferas»! Há relação necessária entre «guardar fielmente a Palavra» e «estar perfeito no amor de Deus».