Olhares sobre a escola (2)
4. Duas revelações e algumas propostas - No artigo da semana passada reflectíamos sobre alguns dos déficits do ensino secundário, a partir de uma opinião de Freitas do Amaral. O maior mal do ensino secundário nasce muito antes dele (como acontece depois com os males do ensino universitário): nasce no jardim de infância, porque é aí que deve começar a educação estética, moral, ética e cívica dos futuros cidadãos. Prolonga-se no ensino primário (deve chamar-se primário, porque deve ser o primeiro em ordem cronológica e em importância formativa), base do bom êxito de toda a formação posterior, científica, estética, económica e humanista.
Escutei com agrado duas revelações recentes que põem em causa os procedimentos que têm vindo a ser dogmaticamente seguidos nas práticas escolares oficiais. A primeira surge nas conclusões do grupo de trabalho criado para estudar as causas das deficiências no conhecimento da matemática, a partir de dados europeus cuja fiabilidade não discuto (mas de que desconfio), e que tanto mereceu foros mediáticos e tanto assustou as nossas hostes ministeriais. Esse grupo de trabalho finalmente concluiu o que é o óbvio (a velha história de "O rei vai nu"): que é necessário insistir na valorização da memória nas idades infantis, quando ela é especialmente capaz da captação de todos os dados para a vida. Tantro na matemática, como na língua, como na geografia, na história e nas ciências da natureza e da vida. O raciocínio é concomitante, e manifestar-se-á no tempo oportuno de desenvolvimento e de actualização. Sem obnubilar a utilidade prática da máquina de calcular, ensinem-se antes as crianças a calcular sem máquina para que melhor possam calcular com ela!
Para quem sempre tem vindo a defender que o grande mal do ensino está em que nos primeiros anos de aprendizagem se tem vindo a desprezar a memória, este conclusão não é nova, mas é agradável. Oxalá produza frutos brevemente.
A segunda revelação surgiu numa conferência sobre o desenvolvimento científico, na qual o médico investigador Sobrinho Simões, quando veio ao de cima o problema das deficiências no conhecimento científico, afirmou: é preciso reduzir o número de disciplinas científicas e dar uma melhor ordenação e consistência às matérias que se ensinam ou aprendem. Apeteceu-me aplaudir porque, não sendo do meu campo, pelo conhecimento da escola sempre afirmei e até escrevi já que o grande mal do ensino das ciências (e noutras matérias) era a proliferação de disciplinas em que os alunos passavam a vida a ouvir as mesmas coisas e nunca aprofundavam estruturadamente nenhuma delas. Sempre me pareceu que o importante não é a denominação mas o conteúdo e a sua estruturação e articulação - que facilmente se vê que não tem existido.
5. Acrescento mais duas propostas essenciais: uma no nível dos conteúdos e métodos do ensino, outra no nível organizacional das escolas. No primeiro caso, a valorização rápida, enquanto é tempo, do ensino da língua e cultura portuguesa - e que sobretudo no ensino secundário seja esta a sua denominação. Curiosamente sobre este aspecto não se nota grande preocupação nas hostes ministeriais, que nem sequer se preocupam pela quantidade de erros de linguagem e expressão com que quotidianamente nos bridam as televisões. Todos dizem que sim, que sim senhor, que aprender bem a língua materna é importante, mas na hora de decidir nunca se valoriza este ensino. Para quê: afinal todos sabemos falar português! Importante é aprender o inglês para poder dizer aqueles bonitas palavras com que nos bridam os intelectuais, desde os ministros até aos cantores.
Segundo aspecto: a substituição da mística despótica e insensata dos objectivos, que se instalou no sistema, pela criteriosa selecção e articulação dos conteúdos e matérias, quer a articulação vertical (dentro de cada disciplina), que a horizontal (entre os conteúdos das diversas matérias, para que se possa operacionalizar a interdisciplinaridade. E terminar-se de vez com a forma como se elaboram os programas: cada grupo para o seu lado, a inventar originalidades baratas, e deixando depois para os docentes a missão de exercer a interdisciplinaridade - onde ela não pode ser exercida, porque já foi ignorada, quando "executada" - no triste sentido penal desta palavra. Promover a elaboração articulada dos programas por equipas que se respeitem mutuamente e que realizem uma verdadeira interacção educacional entre os diversos campos dos saberes - que tanto tem faltado.
A nível organizacional, proponho mais umas quantas coisas, que úteis bem seriam: a escola não deve ser gerida (o que é um conceito económico certamente respeitável nas coisas económicas), mas deve ser dirigida (o que é um conceito pedagógico e educacional): toda a educação é uma orientação, um Sendo bem dirigida (como elemento constituinte desta boa direcção), deve ser relacionada com a família e a sociedade, respeitando o âmbito próprio de cada uma, numa interacção dinâmica.
O problema da chamada autonomia pode ser equacionado com aquela frase que no Brasil se repetia muito nos tempos de afirmação nacionalista - o mesmo é dizer autoritária e autocrática: autonomia - ame-a ou deixe-a. Como ninguém e ama, sobretudo quem mais fala nela, que é o Estado e as teoréticas da educação, o melhor é abandonar o conceito à paz da sua inexistência. Ou então abandonar os pavores da falta de controlo por parte dos poderes, e dar às escolas a possibilidade de se tornarem cadinhos de liberdade, gerindo os recursos que lhe devam ser atribuídos.
Desburocratizar a organização escolar. A actual estrutura de direcção das escolas é um mastodonte burocrático que só serve para desbaratar energias, gastar papel e outros materiais, criar conflitos entre as pessoas que deviam unir esforços que todos são poucos e criar complicações onde elas não existem.
Substituir a proliferação de disciplinas em que caiu o ensino secundário (contrariado depois pela criação absurda de departamentos, que o não são, apenas agrupamentos para reunir o que se dispersou) e definir um conjunto de disciplinas essenciais, articulando dentro delas e entre elas os saberes e as sinergias necessárias.
Diminuir o peso da ideia de currículo pela de conteúdos programáticos educacionais: definir, estruturar, integrar, coordenar, articular - o pior mal da falta de saber dos estudantes é a falta disto tudo.
6. Devo terminar com sinais de esperança: o melhor que tem a escola é a sua própria existência. É também aquilo que faz e que a comunicação social ignora, mesmo quando conhece. É a generosidade e dedicação dos professores e outros membros da comunidade escolar e o trabalho e estudo da generalidades dos estudantes. É a incontável multiplicidade de iniciativas que por toda a parte emergem. É a verdadeira face da escola: a que trabalha, a que tendo deficiências continua a criar caminhos de formação para as mulheres e homens do futuro.