C. F.
1. É o tema em destaque desta edição. A cidade do Porto acaba de ser dotada com um novo instrumento musical para a liturgia e para a arte dos sons: o novo órgão de tubos da Igreja de Cedofeita. Instrumento de concepção inovadora, que integra no órgão novo agora completamente fabricado, de forma artesanal, um órgão antigo procedente do convento da Avé-Maria. Esta solução, que o construtor, o organeiro suiço Thomas Kuhn, aceitou realizar, foi considerada pioneira e modelo de outras soluções futuras no aproveitamento de órgãos antigos. Cada um mantém as suas características, e ambos podem entrosar-se criativamente.
A inauguração foi ealizada em dois momentos:o primeiro foi a bênção do instrumento, em típico e soalheiro dia festivo de S.Martinho, padroeiro da paróquia, celebrações ambas presididas pelo Bispo Diocesano; o segundo foi um memorável concerto pelo organista alemão Günter Kaunzinger, que interpretou três obras musicais características de três períodos: o barroco, com a tocata e fuga em Mi bemol maior, de J. S.Bach (1685-1750); o período romântico, com o Coral n.º 3 em Lá menor, de César Frank (1822-1890) e uma adaptação para órgão da conhecida suite para piano de Mussorgsky (1839-1881), Quadros de uma exposição, depois orquestrada por Ravel (e outros), adaptação realizada pelo próprio Kaunzinger. O que foi completado com uma "improvisação" (que dourou 20 minutos) sobre dois temas que lhe foram sugeridos na altura: o canto popular mariano português "Bendizemos o teu Nome", em cruzamento ou interacção com o motete gregoriano "Salve Regina".
Pode afirmar-se que a importância do acontecimento para a valorização cultural e para o património da cidade esteve simbolicamente expressa pela presença do Presidente da Câmara e da vereadora do pelouro da animação da cidade. E quando uma autarquia, com todos os problemas de todo o tipo que tem para resolver, sabe descobrir também a dimensão da criatividade cultural e reconhecer que o trabalho realizado pelas comunidades cristãs possui um valor cultural e social perene, isso é um sinal positivo de oportuna e louvável sensibilidade.
2. D. Armindo integrou o acontecimento no exemplo do patrono, S. Martinho: numa sociedade egoísta e avessa aos valores do espírito e da solidariedade, o exemplo do antigo bispo de Tours é sobretudo um sinal de partilha, modelo, portanto para as atitudes políticas e sociais que devem enformar a vida pública. Por outro lado, os valores da arte não são incompatíveis com os valores da partilha: a arte eleva o espírito, revela novos valores, torna as pessoas mais sensíveis para as grandes aspirações espirituais do homem. Tal é a doutrina que a própria Igreja tem sempre vindo a proclamar e a promover.
3. O concerto inaugural foi uma demonstração fabulosa dessa criatividade. O organista alemão G. Kaunzinger mostrou ser não apenas um virtuoso no domínio e exploração das potencialidades do instrumento, mas igualmente um pedagogo: na selecção dos textos musicais, na variação e perfeição da sua execução, na capacidade de improvisação, no jogo entre as diversas intensidades e sonoridades organísticas, desde os registos de suavidade até à exaltação de "plein orgue". Mostrou ainda a sua capacidade de "orquestrar para órgão" (seja-nos permitida a expressão) uma das composições mais divulgadas da obra pianística: os célebres "Quadros de uma Exposição", de Mussorgski. Tanto a "orquestração" como a a execução foram de uma extraordinária riqueza de timbres, particularmente no jogo entre a tonalidade jocosa das brincadeiras infantis, nos registos dos "tiples" e das flautas, até ao impressionista quadro agrícola do carro puxado por bois, em que a pedaleira era protagonista, passando pela visão cava e densa do ambiente de um sepulcro, ou a contrastante vitalidade dinâmica da "Grande porta de Kiev", com que terminam os "quadros", tudo justifica a firmação de que o órgão é quase uma orquestra, e por isso se considera "o rei dos instrumentos". Por isso o "arranjo" bem se poderia chamar "orquestração".
O improviso sobre a canto popular mariano "Bendizemos o teu nome", conjugado como gregoriano "Salve Regina" (que lhe foi proposto apenas na ocasião), improvisação que desenvolveu ao longo de vinte minutos, e que conjugou também de forma dinâmica e interactiva toda a força do órgão com a interioridade dos registos mais suaves. A melodia gregoriana fluía sempre como um refrescante regato primaveril.
Mas não ficamos por aqui: os ouvintes emocionaram-se certamente com a novidade e aplaudiram com justificado entusiasmo. O organista correspondeu com um fabuloso extra: nada mais que a sublime ária do 2º andamento da suite n.º 3 para orquestra de Bach, melodia íntima tão conhecida e tão maltratada por vezes em execuções de circunstância (porque é que o anúncios comerciais vão sempre descobrir a sensibilidade destas músicas - que ao menos tenham esse mérito!). Sem aquela expressão piegas com que às vezes nos é servida, num andamento escorreito, talvez o mesmo Bach tivesse gostado de a ouvir...
Bem se entendeu porque lhe chamam "o Liszt do órgão" e porque lhe foi atribuído a designação, em 1994, de "intérprete do ano": à sua prodigiosa técnica associa-se a capacidade de memorização (todas as partituras foram tocadas de cor) e de improvisação, à semelhança de outra intérprete prodigiosa de órgão, que aliás foi sua mestre: Marie Claire Alain, que também já tocou no Porto, num dos mais prodigiosos concertos a que nos foi dado assistir. Continua a ser verdade, e aqui fica dito para os que não saibam (ainda): nosúltimos 20 anos têm actuado no Porto alguns dos melhores organistas mundiais! Oxalá que continuem a encher-se, particularmente de jovens, estes concertos...
4. Anuncia-se agora um ciclo de concertos celebrativos desta inauguração. Já no Sábado, dia 17, às 21,30, actuará o titular do grande órgão de Notre Dame de Paris, Olivier Latry; no dia 3 de Dezembro (Domingo),às 16 horas, concerto pelo Coro da Sé do Porto, com a soprano Sílvia Mateus e a organista Rosa Amorim; No dia 17 de Dezmbro (Domingo), também ás 16 horas, será proporcionada a Abertura Sinfónica de Charles Vidor, composta para a inauguração do grande órgão do Palácio de Cristal, no século passado e que agora será apresentada sob a direcção do Cónego Ferreira dos Santos.
DEPOIMENTOS
Cónego António Ferreira dos Santos *
A Paróquia de Cedofeita está de parabéns. Presto-lhe homenagem pela sensibilidade cultural e pastoral patente nesta realização. Um instrumento de realização inédita, pela integração de um órgão antigo dentro do novo, respeitando a autonomia de um e de outro, podendo mesmo dialogar entre si. Esta solução vai seguramente servir de referência para outros casos. A firma Kuhn merece os nossos parabéns e aplausos. Esta realização constitui também um desafio a outras comunidades para que decidam instalar nas igrejas instrumentos semelhantes, para exaltar a beleza, a bondade e a verdade, que são dons de Deus, que são a sua própria presença.
O organista Kaunzinger é senhor de um excepcional virtuosismo organístico, e seguramente um dos maiores mestres actuais dessa arte. É um privilégio poder escutá-lo hoje.
* Reitor da Igreja da Lapa, Director do SDL e da Escola das Artes da Universidade Católica
Dr.ª Regina Soares *
Estou profundamente emocionada com o que acabamos de viver. Foi um concerto magnífico. Impressionou-me sobretudo aquela junção do movimento dos pés e das mãos do organista, que parecia que era o homem inteiro que tocava aquelas melodias.
Sinto uma grande riqueza espiritual transmitida através desta sonoridade, e ao mesmo tempo acho um valor cultural de grande alcance. Penso que assim as pessoas podem ser mais atraídas à arte, aos valores artísticos. Acho que aquela ideia de mostrar pelo video projectado toda a variação e diversidade da actuação do organista foi muito bem conseguida. Penso que assumiu um aspecto pedagógico muito importante.
* Colaboradora da Paróquia de Cedofeita