Ernesto Campos
A acção começa na consciência. A consciência, pela acção, insere-se no tempo. Assim, a consciência atenta e virtuosa procurará o modo de influir no tempo.
O texto em epígrafe ornava a contracapa de alguns livros editados pela Livraria Morais, nos anos sessenta do século passado. E não é apenas um ornamento, vertido como está na prosa poética e quase silogística que é saboroso ler. Mais que isso, traduz uma certa mundividência, um estilo de vida e um modo de estar no tempo.
A revista com o mesmo nome, dirigida por Alçada Baptista, que há dias deixou este mundo, usava um subtítulo Revista de pensamento e acção. Ao relê-la agora, cogitando sobre os seus propósitos (que foram também os propósitos da vida e obra do seu Director) apetece-nos juntar-lhe um outro subtítulo exemplo de coerência entre o modo de viver (no presente) e o tempo a viver (no futuro). Um episódio narrado nas suas Algumas Memórias é bem a expressão dessa coerência generosa, que foi modelo para toda uma geração. A um amigo e companheiro dessa aventura de divulgar as ideias dum modo novo de estar no tempo, Alçada Baptista falava do dinheiro que tinha perdido com a iniciativa editorial. O amigo retorquia-lhe que não era capital perdido, fora um investimento político notável que poderia render-lhe imenso. Fiquei perplexo diz. Então aquele amigo, suposto irmão no mesmo sonho imaginava-lhe tais propósitos? O trabalho político em que se empenhara confessa fizera-o por imposição da consciência, como intervenção ética no sentido de dar à sociedade portuguesa um estatuto onde o homem pudesse viver com dignidade.
Na Peregrinação Interior diz de si próprio: transpus uma porta da vida que dá para um outro e diferenciado olhar sobre tudo. Mas com dúvidas e angústias e depressões que o faziam comparar a vida a uma professora rabugenta que faz sempre as mesmas perguntas porque são essas que vão sair no exame final. As mesmas perguntas eram sua inquietação religiosa: acabo por andar a coçar o sagrado, não digo até fazer ferida mas, pelo menos, até ficar vermelho; como quem diz a tal consciência atenta e virtuosa que questiona o corpo das ideias que formam a nossa civilização que, porventura pergunta-se é uma grande doença mental.
Esse seu outro diferenciado olhar aborda, de facto, tudo: a inculpação do corpo, o puritanismo calvinista, a liberdade, a sabedoria feminina, a educação, a alma, a metafísica, a cultura, a culpabilidade, a política, o individualismo, o amor e acaba por concluir, de tudo, que nos faz falta uma Teologia da Felicidade. Isto é, um outro e diferenciado olhar sobre as (nossas) coisas de Deus e as coisas nossas do dia-a-dia, se calhar não muito diferentes umas das outras. Um texto de Gandhi, que Alçada Baptista cita e que o encantou duvidando embora da sua exequibilidade, é bem a expressão da consciência atenta e virtuosa e do olhar diferenciado.
Vale a pena transcrever, como referência inspiradora também nesta nossa conjuntura: O algodão cresce, ali em frente, naquele campo. O dono vende-o a um agente que o revende a um comerciante de Bombaim onde é vendido a um exportador que o embarca para um porto inglês onde é vendido a uma fábrica que o transforma em fio e o vende a outra fábrica que faz tecido de algodão e que o vende a um comerciante que o vende a outro que o exporta para Bombaim onde é vendido a outro comerciante que o vende a um agente que o vende na aldeia onde está o dono do campo. Sujeitando o algodão, em toneladas, a este complicado itinerário expomo-lo às traças e às térmitas, ao bafio e aos incêndios, aos roubos e naufrágios, às greves, às altas e às baixas, às crises e às guerras. Para isto são necessários milhares de quilómetros de caminhos-de-ferro, portos, docas, alfândegas, entrepostos, navios, polícias, tribunais e prisões, escritórios, seguros, bancos e bolsas, exércitos e canhões, colónias e outros escravos, fábricas, máquinas e milhões de proletários necessariamente em revolta. E, no entanto, a economia do problema resolve-se se o dono do campo pegar numa roca de fiar e um fuso e o fizer rodar até que estejam vestidos de algodão ele e a família e a sua aldeia em vez de fazer o algodão dar a volta ao mundo.
Isto é outra lógica e é a consciência de que muita coisa ficou errada no andamento do mundo. Mas uma coisa é certa: tendo transposto, aos 81 anos, estoutra porta da vida para o exame final das sempre mesmas perguntas, Alçada Baptista já não tem agora dúvidas sobre a exequibilidade deste texto.