[ Especial ]



    Crónica do Quotidiano

    Recordando Sousa Franco


    Aqueles que acompanharam a actividade política do Professor Sousa Franco - e, aqui, apenas me atenho a esta vertente da sua vida - não podem senão sentir-se estimulados pelo exemplar sentido cívico da sua cultura e do seu carácter. Vê-lo partir quase em directo, nas imagens televisionadas que não se apagarão tão cedo da nossa retina, não sei se nos revolta, se nos envergonha. Sei que nos alerta e nos alenta.
    Dos depoimentos que sobre o seu percurso entre nós foram divulgados anotei o do Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa: "O Professor Sousa Franco era... das pessoas mais bem preparadas e mais conscientes daquilo que é a missão do leigo (sic) no mundo".
    Anotei e concordei.
    De facto Sousa Franco não cultivou aquele pudor ou recato que leva outros a não querer "sujar as mãos" nas questões do quotidiano da república. Ele não remeteu as suas convicções para o plano das afirmações de ocasião. Não cultivou aquele distanciamento bem calculado perante as questões difíceis, refugiando-se num equilibrismo de equidistância para não ser "chamuscado" pelas consequências do afrontamento daqueles que, no momento, cavalgam a crista da onda do poder. Sousa Franco não procurou estar de bem com Deus e com o diabo. Não escondeu a luz debaixo do alqueire.
    Anotei e estranhei.
    O Senhor Cardeal refere "... aquilo que é a missão do leigo no mundo". Eu entendi. O Senhor Cardeal queria referir aquilo que é a missão do cristão no mundo.
    Se há palavras chocantes no nosso vocabulário, leigo é uma delas, se dita de um baptizado. Dita de um cidadão que nada percebe de futebol e que, por isso, se diz leigo no assunto, tudo bem. Mas, leigo, dito de um cristão... A palavra leigo sugere ou conota, ainda, uma cultura da qual muitos de nós já nos distanciámos e da qual guardamos as piores recordações. Refiro-me à cultura do clericalismo que medrou no interior das comunidades cristãs. Tratava-se da cultura de menoridade e da irresponsabilidade daqueles que, na Igreja, não fossem clérigos. Igreja era coisa de padres, de bispos, de clérigos. O clericalismo tornava os cristãos ajudantes dos padres. Via não o Povo de Deus em missão no mundo, mas uma instituição repartida entre aqueles que têm acesso ao poder, ao sagrado, porque receberam uma unção para isso, e os outros. O clericalismo mata à nascença a alma da Igreja que é uma comunidade animada pelo Espírito.
    O Professor Sousa Franco foi um cidadão atento e interveniente. Não apesar das suas convicções, mas por exigência delas. Estas, as convicções, foram energia, inspiração, alento e luz para os seus passos.

    A. Teixeira Coelho