[ Cultura ]



    Do Palacete das Lousas à Travessa das Musas

    Ilissínio Duarte


    Quando tinha cinco anos e passava com minha mãe, pela rua de Gonçalo Cristóvão no local onde hoje é o Jornal de Notícias, não era para mim bom dia. Havia um bom edifício num espaçoso jardim gradeado, com busto de bronze que me assustava. Através do gradeamento via-se o Palacete das Lousas onde havia uma escola comercial que formava bons profissionais “guarda-livros”, hoje técnicos de contas. Era uma escola privada fundada e dirigida por Raúl Dória, de quem era o busto que eu temia. Mais tarde já adolescente saberia que era um bom curso que formava bons profissionais. Havia também escola primária, também particular, e da mesma gente. Nos anos 50 do século XX o Dr. Veiga de Macedo, ministro, iniciou a escolaridade oficial obrigatória. Dois colegas meus, irmãos, mas da idade dos meus pais, vieram de Sobreira-Paredes para essa escola, pois, sendo ricos, não queriam ir para a “escola do governo”. Aconteceu-lhes, como a muitos outros, que já com boas habilitações, para o tempo, e até bem colocados profissionalmente, tiveram de ir fazer exame de 4.ª classe, da “primária”, ao ensino oficial. Claro que todos passaram no exame. Raúl Dória começou a ensinar em 1900 no seu quarto. Depois foi a criação da sua Escola de que já se apagaram os vestígios. Entretanto o busto “tenebroso” foi para o Largo do Bonjardim, actualmente Largo de Tito Fontes. Quando lá passo olho para o busto e sorrio.
    Há dias fui ver terminadas as obras da Rua do Paraíso o que me levou ao antigo Bairro Alto do Bonjardim com a sua recuada Fonte de Vila Parda. Há citações desse Bairro Alto em 1770. Desci o Bonjardim cheio de casas em ruínas e através dessas ruínas encontrei a Rua Raúl Dória, antiga Travessa das Musas que nos levava até à Estação da Trindade. Dória viveu de 1872 a 15.09.1922. A zona das Musas e da Fontinha são um autêntico meandro. Na Rua da Fontinha havia uma fraga donde brotava água que caía para um tanque. Uma questão de águas originou um 1777 uma disputa judicial. No Largo da Fontinha encontram-se a Rua das Musas, a Rua Bela da Fontinha e Travessa da Fontinha. Na zona, a Rua da Fábrica Social, que principia na Rua das Musas. Em 1813 era chamada Viela das Musas.
    O lugar do Bonjardim foi propriedade do Cabido a partir de 1427, embora já fosse citada em 1296. Foi propriedade do Bispo D. Vicente Mendes com a Capela de Santo António e a Quinta de Gonçalo Cristóvão que deu à rua o nome e o terreno. Bonjardim era o início da Estrada de Guimarães, a partir da Porta dos Carros. A Travessa do Bonjardim foi Viela dos Tintureiros e vai de Sá da Bandeira à Rua Formosa. Ali onde foram os Armazéns Lã Maria dos Ayres Pereira. Pegado, na esquina com a viela estão emparedados com tijolos, recentes. Ainda conheci ali o último dos tintureiros da zona. E nos anos 40 do século passado mandávamos lá limpar as “zambrenes” (gabardinas de algodão, que ainda hoje usamos, mas fizeram furor). Na Rua do Bonjardim uma casa e uma lápide muito mal tratadas. Eu transcrevo: “Nesta casa aos 10 (?) de Fevereiro de 1863 nasceu o Mestre Artur Loureiro. Morto em Leonte do Alto do Gerez em 07.07.1923. Mestre entre os mestres pintores da sua terra e do seu tempo, como homem e como artista. Honrou o Porto. Portugal honrou, glorificando a arte portuguesa. Por iniciativa de “O Primeiro de Janeiro” colocando esta lápide os seus admiradores em 11.02.1930”. Depois de ver a Rua Raúl Dória e imediações certamente correrá para a Estação da Trindade. Sempre é “coisa nova”. A antiga, provisória dezenas de anos, foi muitas vezes tema para as “Revistas à Portuguesa”, que íamos ver, em família, ao Teatro Sá da Bandeira. Eu entrava “de borla”.