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    A Igreja pede perdão pelos erros do passado

    Memória e reconciliação


    Em 12 de Março, I Domingo da Quaresma, a Igreja Católica celebra o «Dia do Perdão», no contexto do Grande Jubileu do ano 2000. Na celebração, o Santo Padre evocará as maiores faltas eclesiais do passado e do presente, dando cumprimento à sua vontade de «purificar a memória». Para o efeito, uma comissão teológica internacional, presidida pelo teólogo Bruno Forte, preparou um documento intitulado «Memória e reconciliação: a Igreja e os erros do passado».
    Trata-se de um texto de cerca de cem páginas, já editado em França e na Alemanha, e a que Bruno Forte atribui um significado altamente profético, cujas raízes se encontram na afirmação de Jesus: «A Verdade vos tornará livres».
    Citando ainda Bruno Forte, importa que «toda a Igreja o assimile profundamente, para viver de facto a graça do Jubileu».
    De «Memória e reconciliação» apresentamos hoje os extractos tornados públicos pelo jornal «La Croix», na sua edição de 2 de Março. Mas o texto já está na íntegra, na Internet, na página do Vaticano, ainda que apenas em Inglês, Alemão e Italiano

    Os pedidos de perdão de João Paulo II
    «João Paulo II não se limita a reavivar o arrependimento pelas "lembranças dolorosas" que marcam a história das divisões entre os cristãos, como o haviam feito Paulo VI e o Concílio Vaticano II; ele estende também a riqueza do perdão a todo um conjunto de acontecimentos históricos nos quais estiveram implicados, a diversos títulos, a Igreja ou grupos particulares de cristãos.
    Na Carta Apostólica Tertio millenio adveniente, o Papa exorta a que o Jubileu do Ano 2000 seja uma ocasião para purificar a memória da Igreja de "todas as formas de contra-testemunho e de escândalo" registadas no decurso do passado milénio. A Igreja é convidada a "carregar, com mais viva consciência, o pecado dos seus filhos". Ela "reconhece como seus os seus filhos pecadores" e convida-os a purificarem-se, mediante o arrependimento, dos erros, infidelidades, incoerências e lentidões (...)»

    As questões sublinhadas
    (...)A dificuldade que se apresenta é definir quais são as faltas passadas, sobretudo em virtude do juizo histórico que esta tentativa implica; porque, no que aconteceu, é preciso distinguir a responsabilidade ou a falta a atribuir aos membros da Igreja enquanto crentes, daquilo que diz respeito aos chamados séculos "de cristandade" ou às estruturas de poder em que o temporal e o espiritual estavam estreitamente unidos.
    (...) Os passos dados por João Paulo II para pedir perdão pelas faltas do passado foram interpretados em muitos meios, eclesiais ou não, como sinais de vitalidade e autenticidade da Igreja, apropriados para o reforço da sua credibilidade. Por outro lado é justo que a Igreja contribua para modificar as falsas e inaceitáveis imagens de si mesma, sobretudo naqueles domínios em que, por ignorância ou má fé, alguns sectores de opinião se compraziam em atribuir-lhe uma reputação de obscurantismo e intolerância.
    Os pedidos de perdão do Papa suscitaram uma emulação positiva no meio eclesial e mesmo fora dele. (...) Não faltam, no entanto, fiéis desconcertados e perturbados na sua lealdade para com a Igreja. Muitos deles interrogam-se como transmitir o amor à Igreja às jovens gerações, quando esta mesma Igreja é acusada de crimes e pecados. Outros observam que reconhecer os pecados é pelo menos um gesto unilateral que os detractores aproveitam para verem, com satisfação, confirmados os preconceitos que espalhavam ao seu redor. Outros ainda advertem contra a culpabilização arbitrária das actuais gerações de crentes por faltas em que nunca consentiram, ainda que estejam dispostos a assumir as suas responsabilidades, na exacta medida em que os grupos humanos as assumiriam na atenção pelas consequências das injustiças noutra época cometidas pelos seus predecessores. Há também quem opine que a Igreja poderia purificar a sua memória perante as acções ambíguas em que no passado esteve implicada, participando simplesmente no trabalho crítico sobre a memória desenvolvido na nossa sociedade. Poderia, assim, afirmar que comunga com os seus contemporâneos a rejeição de tudo o que a consciência moral actualmente reprova, sem se apresentar como única culpada e responsável pelos males do passado (...). Poderia, enfim, olhar-se apenas aos grupos que solicitassem lhes fosse apresentado um pedido de perdão, quer por analogia com outros , quer porque pensam ter sforido injustiças. Em todos estes casos, a purificação da memória nunca poderia significar que a Igreja renuncia a proclamar a verdade revelada que lhe foi confiada, seja no domínio da fé seja no da moral.
    Perfilam-se, pois, diversas interrogações: pode a consciência actual culpar-se por uma falta relacionada com fenómenos históricos únicos, como as Cruzadas e a Inquisição? Não é demasiado fácil julgar com a consciência de hoje os protagonistas do passado, como se a consciência moral não estivesse situada no tempo? E, por outro lado, pode negar-se que o juizo ético está sempre em causa, pelos simples facto de a verdade de Deus e as suas exigências morais serem permanentemente válidas? (...)»

    Alguns critérios éticos
    «No plano moral, o pedido de perdão supõe a admissão de responsabilidade; mais precisamente, a responsabilidade de uma falta cometida contra outros. (...) A responsabilidade pode ser objectiva ou subjectiva(...). A responsabilidade subjectiva desaparece com a morte de quem cometeu o acto; não se transmite por geração; os descendentes não herdam, por isso, a responsabilidade (sujectiva) pelos actos dos seus antepassados. Neste sentido, pedir perdão supõe contemporaneidade entre os ofendidos pela acção e aqueles que a praticam.
    A única responsabilidade susceptível de se prolongar na história não pode ser senão de tipo objectivo (...). Neste contexto, pode falar-se de uma solidariedade que une o passado e o presente numa relação de reciprocidade. Em certas situações, o peso que carrega a consciência pode ser tão pesado que constitua uma espécie de memória moral e religiosa do mal perpetrado; trata-se, por natureza, de uma memória colectiva. Ela tetemunha significativamente a solidariedade objectiva entre os que praticaram o mal no passado e os seus herdeiros no tempo actual. Torna-se então possível falar de uma comum responsabilidade objectiva. A libertação do peso de uma tal responsabilidade obtém-se antes de mais nada implorando o perdão de Deus pelas faltas passadas e depois, sendo o caso, mediante a purificação da memória que culmina no perdão mútuo do pecado e das ofensas no presente.
    Purificar a memória significa eliminar da consciência pessoal e colectiva todas as formas de ressentimento e violência deixadas pela herança do passado, na base de um novo e rigoroso juizo histórico-teológico, ele mesmo alicerce de um comportamento moral renovado (...)».

    A divisão dos cristãos
    «Ao longo do milénio que termina, apareceram entre os cristãos grandes divisões, em aberta contradição com a vontade explícita de Cristo (...). Tal divisão (...) é ocasião de escândalo para o mundo (...). O caminho aberto para ultrapassar estas diferenças é o do diálogo doutrinal animado pelo amor recíproco. As rupturas parecem ter consistido na falta de amor sobrenatural, comum às duas partes (...). Reconhecendo esta falta, o Papa Paulo VI pediu perdão a Deus e aos "irmãos separados" que se sentiram ofendidos "por nós" (Igreja Católica). (...) Os acontecimentos de 1965 (culminando em 7 de Dezembro de 1965 com a abolição dos anátemas de 1054 entre o Oriente e o Ocidente) mostram que a confissão deste pecado das exclusões recíprocas pode purificar a memória e suscitar novo caminho. (...) Deste modo, a memória liberta-se da prisão do passado e convida os católicos e os ortodoxos, tal como os católicos e os protestantes, a ser arquitectos de um futuro mais conforme ao mandamento novo. (...) Os filhos da Igreja devem examinar seriamente a sua consciência, para avaliar se estão activamente comprometidos com a obediência ao imperativo da unidade, e se vivem a conversão interior.

    O uso da violência ao serviço da verdade
    «Ao contra-testemunho da divisão dos cristãos é necessário acrescentar o das diversas ocasiões em que, no passado milénio, foram utilizados meios duvidosos para fins justos, tais como a pregação do Evangelho ou a defesa da unidade da fé (...). Referimo-nos às formas de evangelização que deitaram mão de meios impróprios para anunciar a verdade revelada, ou que não levaram a cabo um discernimento evangélico adaptado aos valores culturais dos povos, ou não respeitaram a consciências das pessoas a quem a fé foi apresentada; assim como às formas de violência exercida na repressão e correcção de erros.
    Deve reservar-se idêntica atenção às possíveis omissões de que os filhos da Igreja se tenham tornado responsáveis em diversas situações, a propósito da denúncia de injustiças e de violências (...). Uma vez apurados os factos, será necessário avaliar o seu valor espiritual e moral, tal como o seu real significado. Só deste modo será possível evitar qualquer memória mítica e chegar à memória crítica adequada, capaz -- à luz da fé -- de produzir frutos de conversão e de renovação».

    Cristãos e judeus
    «Um dos domínios a exigir particular exame de consciência é a relação entre cristãos e judeus. (...) O balanço das relações durante dois mil anos é basicamente negativo.
    A hostilidade ou desconfiança de muitos cristãos em relação aos judeus, ao longo do tempo, é um doloroso facto histórico, motivo de profundo remorso da parte de cristãos conscientes de que "Jesus era um descendente de David (...), que os judeus são nossos irmãos queridos e amados, e que, num certo sentido, são realmente os nossos irmãos mais velhos».
    A Shoah foi o resultado de uma ideologia pagã, o nazismo, animado de um impiedoso anti-semitismo, que não renegava apenas a fé mas negava a própria dignidade do povo judeu.
    É, entretanto, fundamental que nos interroguemos também se a perseguição do nazismo contra os judeus não foi realmente facilitada pelos preconceitos anti-judaicos, presentes no espírito e no coração de alguns cristãos (...) A resistência espiritual e a acção concreta de outros cristãos não foi a que poderia esperar-se de discípulos de Cristo. Tal facto constitui um apelo à consciência de todos os cristãos de hoje; exige um acto de arrependimento (techuva), e torna-se uma espora para que (...) se mantenha a memória religiosa e moral da ferida infligida aos judeus.

    As nossas responsabilidades nos males de hoje
    «Relacionada com este eclipse de Deus, seguiu-se uma série de fenómenos negativos, tais como a indiferença religiosa, a ausência difusa do sentido da transcendência da vida humana, um clima de secularismo e relativismo ético, a negação do direito à vida da criança por nascer, sancionada por leis abortivas, e uma grande indiferença perante os gritos dos pobres em amplos sectores da família humana.
    Em que medida é que os crentes são responsáveis por estas formas de ateísmo teórico e prático?
    Esta questão inquietante deve ser colocada (...). Os cristãos também receberam a responsabilidade de viver de modo a manifestar aos outros o verdadeiro rosto do Deus vivo. Eles estão chamados a irradiar no mundo a verdade de que "Deus é amor (agapé)" (...)
    Importa, finalmente, sublinhar que mencionar as faltas dos cristãos do passado não leva apenas a confessá-las a Cristo salvador, mas também a louvar o Senhor da história pelo seu amor misericordioso (...). Mais ainda: recordar estas faltas quer dizer, também, aceitar a nossa solidariedade com os que, no bem e no mal, nos precederam no caminho da verdade».

    Tradução: João Aguiar