Ferreira de Brito
«Que valerá mais, o povo privado de arte, ideia que tanto assustava Vilar, ou então a arte sem povo, autista e feliz pelo facto de o ser?» É, bem lá no fundo, esta pergunta que o conhecido filósofo, escritor, romancista, ensaísta e recém-chegado dramaturgo, Régis Debray, que foi presidente honorífico do Instituto Europeu em Ciências das Religiões e director da revista trimestral Médium, consagrada às artes, saberes e técnicas da transmissão, faz neste estudo. Figura de muito prestígio europeu, foi com alguma voracidade que me prende a questões de teatralidade que li o seu provocante e bem documentado ensaio Sur le pont dAvignon, prenhe de gostosos e oportunos questionamentos nesta época em que os actores diseurs desapareceram e em que a velha ditadura do texto dramático obedecendo a cânones estéticos definidos é substituída pela mais arbitrária mise-en-scène, prestando-se, às vezes, a uma tarada subversão ou mesmo assassínio da linguagem falada, substituindo-a pela mera expressão mímica e corporal. Se nos representam Corneille, Racine, Molière, Ionesco, Genet ou Samuel Beckett, o que esses homens do teatro (seus recriadores ou sabotadores?) fazem na realidade é desconfiar do poder atraente e convincente da fala, procurando tão somente «re-apresentar» em palco as suas obsessões ideológicas, políticas ou sexuais, sem preocupações de verosimilhança e de respeito pelo espaço, pelo tempo e pelos modos, pelos valores, queridos e assinalados pelos seus Autores, que urge voltar a respeitar na sua integridade textual e semântica.
Régis Debray põe a mão na ferida e com uma sagacidade pouco comum nos ensaístas dramáticos nossos contemporâneos, parte do teatro, para entrar de chofre em domínios pluridisciplinares e faz observações, algumas delas de uma surpreendente originalidade, deixando o seu discurso crítico deslizar como as águas do Ródano sob a ponte de Avignão, cidade dos grandes festivais dramáticos, onde em cada um deles se instala a querela dos precedentes e dos subsequentes, dos antigos e dos modernos. E, numa das suas alfinetadas mais agudas, avança: «que a arte contemporânea não tenha público, não é grave. Ela não foi feita para isso.» E remata friamente: «representa-se cada vez menos, porque não se representa diante de uma sala vazia». No âmago da questão, está sempre subjacente a velha definição de Molière, segundo o qual agradar ao público é sempre a primeira das regras. E sair deste imbroglio é mais difícil do que conseguir evadir-se do Labirinto, porque o criacionismo do artista confronta-se quase inevitavelmente com o empertigado ´intervencionismo do Estado, que baralha as conveniências dos gostos com os gostos das conveniências. É que o Belo, o Verdadeiro e o Bem saem da bula estética do Estado, que não pode nem deve ser dirigista. A sacralização do artista é sempre uma faca de dois gumes: defende, mas pode matar.
Nenhum talento que se preze pode ficar à espera dos subsídios estatais (que são sempre magros!) e procuram submeter a Arte a subserviências indevidas e criticamente inaceitáveis.
Mesmo numa sala sem público para certo tipo de espectáculos, eu levanto-me e aplaudo, de pé, este livro de Régis Debray, que passo a recomendar a todos os Políticos com cargos importantes nos Ministérios e nas Vereações da Cultura estes considerandos teóricos, que eu gostaria de ver aplicados na prática em Avinhão como noutras partes desta Europa que se vê ao espelho e se acha uma dama feia e horrível, que esconde a sua autêntica face. É que nenhuma fealdade esgota a beleza e nenhuma beleza suprime em absoluto a fealdade.