Ocorre em 22 de Maio a festa litúrgica de Santa Rita de Cássia. Uma delegação da Diocese do Porto e da Câmara de Valongo, integrando o Bispo D. Armindo Lopes Coelho e o Presidente da Câmara Fernando Melo, desloca-se a Cássia, na Diocese de Spoletto/Norcia, em retribuição da visita de irmanação realizada em 26 e 27 de Abril deste ano no santuário da Formiga em Ermesinde. A finalidade é participar, com a população local, nas celebrações tradicionais da "Festa das Luzes" em honra de Santa Rita, uma manifestação de fé e tradição popular. Para melhor enquadramento e conhecimento desta tradição, com fortes ligações à região do Porto, apresentamos um texto que situa e justifica a tradição e devoção popular em torno de Santa Rita.
GERALDO J. A. COELHO DIAS, OSB/FLUP
Uma memória
A 22 de Maio celebra a Igreja Católica Santa Rita de Cássia, a quem o povo da zona do Porto, sobretudo Ermesinde, tem muita devoção e com quem se apega muito. Da minha parte, recordo-me perfeitamente de, quando pequeno, ficar admirado a contemplar a imagem de Santa Rita, que estava na Capela mor da Igreja Velha da minha terra, onde fazia par com o Padroeiro São Tiago. Espantava-me aquela imagem de mulher, vestida de hábito religioso, coroa de espinhos na cabeça e olhos cravados num grande crucifixo, que segurava nas mãos, como se fosse um filho querido. Muito mais tarde, já adulto e formado em Roma, participava em Espoleto, nobre e antiga cidadezinha da Úmbria, num congresso sobre "os Judeus na Idade Média". O turismo italiano assegurava dali viagens a Norcia, terra do meu Patriarca S. Bento, e a Cascia, terra de Santa Rita. A combinação destes nomes espicaçou a minha curiosidade em visitar aquelas terras tão próximas, e lá fui eu de "corriera" a Norcia e a Cascia.
Em Cascia ou Cássia, à portuguesa, fiquei boquiaberto com a imponência da basílica, onde repousava o corpo de Santa Rita, que minha velha mãe me dizia ser "advogada dos impossíveis". Ali, perante a singularidade daquela construção grandiosa e a presença de bastante gente, mesmo em dia de semana, pude, desde logo, adivinhar o culto popular desta santa e o porquê de a chamarem "advogada dos impossíveis", isto é, auxílio e protecção para as grandes dificuldades da vida.
Uma história de vida
I - Notas da vida duma mulher de fé. Rita é forma abreviada do nome italiano Margherita ou Margarida. Dado que viveu na distante Idade Média e dela não ficaram memórias contemporâneas, os historiadores estão de acordo em situar o seu nascimento em aldeia próxima de Cássia no ano de 1373, podendo nós distinguir-lhe três períodos de vida, que completam a trajectória da sua feminilidade exemplar.
1º Menina-Donzela. Filha de gente do campo, mas de boa cepa cristã, Rita cresceu à sombra do ambiente familiar na pura religiosidade das gentes da Úmbria. Conta a lenda da santa que, tendo-a os pais levado para o campo, um enxame de abelhas veio depor mel na sua boca. Um homem ferido, que passava, vendo o facto, correu a enxotar as abelhas, ficando de imediato curada a sua mão. Era, por certo, o auspicioso prenúncio duma vida de perfeição. A Igreja passava nesse tempo por dolorosa situação, dividida pelo Cisma do Ocidente, governada por papas que se hostilizavam e traziam a Cristandade embaraçada ora com o Papa de Roma ora com o Papa de Avinhão. Rita, entretanto, gostaria de ser religiosa, porém a vontade dos pais levou-a ao matrimónio.
2ª Esposa -Mãe. Obediente, aceitou casar preconcemente, em 1387, com um vizinho dado à carreira das armas, homem duro e agressivo com quem conseguiu viver de forma harmoniosa e com amor durante 18 anos. Todavia, o marido lutava pelos guelfos, partidários do papa de Roma e isso criava-lhe problemas com os rivais, adeptos do Imperador da Alemanha. Teve dois filhos gémeos, que procurou educar cristãmente, mas viu o marido traiçoeiramente assassinado em 1405 e, pouco depois, perdeu os dois filhos.
3º Viúva-Religiosa. Tendo ficado viúva aos 38 anos e sozinha, pensou realizar o sonho da sua juventude, fazendo-se religiosa. Em Cássia, havia um convento de monjas de Santo Agostinho e ela quis ser ali recebida. Encontrando dificuldades, bem cedo recomeçaram os milagres, recolhidos na sua lenda hagiográfica. Conta-se que uma noite, protegida pelos santos da sua devoção, S. João Baptista, Santo Agostinho e S. Nicolau de Tolentino, foi levada para dentro do convento de Santa Madalena, pertencente às monjas agostinhas. Dando-se conta de facto tão extraordinário, resolveram aceitá-la, e ela, livre dos bens e preocupações da terra, começou a adentrar-se no amor de Deus e no serviço dos necessitados; corria o ano de 1407. Sempre diligente e serviçal, procurava fazer jejuns e penitências para vencer as tentações e, com as irmãs religiosas, saía a ouvir as pregações. Na Sexta-Feira Santa de 1432, depois duma pregação sobre a Paixão de Jesus, que a deixou vivamente impressionada, recolheu à cela do convento e pôs-se a contemplar um crucifixo. Eis senão quando, um espinho se desprende da coroa do Senhor e vai cravar-se na testa de Rita; ficou estigmatizada, suportando grandes dores e penoso sofrimento. A partir daí, associada fisicamente à Paixão de Cristo, experimentará sentimentos de empatia com Jesus crucificado, mas isso não a impedirá de fazer caridade, de visitar doentes, de ir a Roma ganhar as indulgências com as irmãs de hábito, o que lhe deu um alívio temporário. Mas a doença tornou-se gravosa e, em Janeiro de 1442, Rita pediu a uma parente que fosse ao quintal da sua antiga casa e lhe trouxesse uma rosa e dois figos. Foi e, apesar de ser inverno, lá encontrou, maravilhada, aquilo que satisfaria os desejos da amiga. O milagre encontra-se perpetuado através duma bela roseira transplantada da antiga casa para junto da sua cela. Outro milagre está no facto de o director espiritual, para provar a sua obediência, lhe mandar regar uma videira seca, o que ela fazia com toda a paciência; em prova disso, ainda se mostra a videira milagrosa aos peregrinos no mosteiro das agostinhas de Cássia. Ora aí estão dois milagres, aparentemente impossíveis, que a piedade popular se compraz em recordar. Rita faleceu a 22 de Maio de 1447, e diz-se que os sinos da terra começaram todos a repicar em alegre concerto, como que dando a boa nova da sua entrada no céu.
Culto popular e o modelo de convivência
4 - O culto popular da "Advogada dos Impossíveis". Santa Rita, fazendo na sua pessoa a simbiose das vivências de donzela pura, esposa fiel e mãe amorosa, levou a Igreja a aprovar nas igrejas dos agostinhos a "benção das rosas", consideradas "remédio celeste", a 22 de Maio em sua memória. Beatificada em 1628 pelo Papa Urbano VIII, foi canonizada como santa pelo Papa Leão XIII no Ano Santo de 1900, e o seu culto tornou-se, por isso, muito divulgado no começo do século XIX, colocando-se a sua imagem em muitas igrejas. Em Cássia levantaram-lhe um grande santuário (1947); entretanto, a devoção popular venera-a com particular empenho como "santa de todos" e "advogada das coisas impossíveis", tendo em conta os famosos e quase impossíveis milagres e a vivência do génio feminino pela sua maternidade física e espiritual. Entre nós, quem não ouviu falar da Santa Rita da Formiga, festejada em Ermesinde, no antigo convento da "Mão Poderosa", com uma grande romaria em honra da nossa santa? É isso que explica a geminação ou irmanação de Valongo, concelho onde se situa o Santuário da Santa Rita da Formiga e Cássia, concelho e cidade da Basílica de Santa Rita na Itália, feita a 27 de Abril de 2003.
Num tempo de perda de tantos valores morais e de violência generalizada, o exemplo desta Santa que conseguiu mudar o feitio dum marido agressivo e violento, que até viria a morrer assassinado, pode ser uma resposta positiva para a sociedade. De facto, em 20 de Maio de 2000, a urna com os seus despojos mortais da santa foi trazida a Roma para ser venerada pelos peregrinos e o Papa João Paulo II, prestando-lhe culto, fez um notável discurso em seu louvor, apresentando-a como exemplo de caridade e de adesão à Paixão do Senhor, afirmando que o espinho da sua fronte era uma prova da sua maturidade cristã. Santa Rita é, de facto, modelo de vida familiar, atracção para as donzelas, estímulo para as mães, exemplo para as religiosas consagradas, emblema social na procura da tolerância e da pacificação. Perante tais qualidades, o povo cristão, sempre crente e interesseiro, não podia ficar indiferente ao fascínio dos seus milagres e, em momentos de aflição e desespero, recorre a ela como advogada dos impossíveis. A iconografia de Santa Rita dá particular realce à sua devoção à Paixão dolorosa de Jesus Cristo, atribuindo-lhe como símbolos a Cruz do Senhor, a coroa de espinhos, o espinho na testa, representando-a também rodeada de abelhas ou com uma rosa na mão. Não admira, por isso, o impacto do seu culto junto do povo simples e crente.
Bibliografia: BERGADANO, Enzo - S. Rita de Cássia. A Santa de todos, Lisboa, Paulinas, 2002; CROISET, Pe. João - Anno Christão, Tomo II, Porto, Empreza d´ Obras Populares Illustradas, 1886, 460-4663; TRAPÉ, A - Santa Rita e il suo messagio, Milão, San Paolo, 2000.