[ Eclesial ]



    Há flores no deserto

    António Jesus Cunha


    Aconteceu na cidade do Porto. Numa estação dos Correios, uma senhora idosa aguardava pacientemente a sua vez de receber a sua reforma. Ia-se queixando, com um leve sorriso, que estava na fila havia já muito tempo. Quando, finalmente, foi atendida começou a sentir-se mal. A funcionária, solícita, foi buscar um copo de água que, com muito carinho, lhe ofereceu. Não se preocupou com mais nada, prestando à senhora toda a atenção. Quando viu que a indisposição tinha passado, explicou que agora a reforma ia ser-lhe paga em euros e não em escudos, estabelecendo a respectiva equivalência. Depois contou o dinheiro, colocou-o num envelope.
    - É melhor guardar o dinheiro no seu saco, não lhe parece?
    Sem esperar resposta, ajudou a senhora a abrir o saco e lá colocou o envelope. Depois de breves instantes de silêncio, visivelmente preocupada, ainda perguntou:
    - Consegue ir sozinha para casa? Quer que chame um táxi? Ou prefere que telefone a algum familiar?
    - Não se preocupe mais comigo. Agradeço-lhe muito a sua simpatia. Vivo mesmo aqui ao lado.
    Todas as pessoas que ali estavam certamente ficaram tão agradavelmente surpreendidas quanto eu. O que falta a este mundo em que se cultiva a indiferença são gestos de simpatia como este. Um dos contra-valores mais preocupantes e avassaladores é este, a indiferença. Entendo que fere de modo violento o sentido de Justiça, dado que abstrai um cada vez maior número de pessoas do relacionamento correcto com os outros e com Deus.
    Nós, católicos, temos a obrigação de nos empenhar num combate sem tréguas à indiferença. Se por um lado a palavra da Escritura nos adverte "Que fizeste do teu irmão?", por outro a mesma Escritura nos consola - quando praticamos estes gestos de amor aos outros - com a certeza que "cada vez que o fizeste a um desses irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes". Infelizmente, habituamo-nos a viver a "nossa vida" e ficamos muito felizes quando nada nos falta. Ainda bem que sentimos esta felicidade de termos tudo o que precisamos. Mas não chega. É necessário pensar nos outros. E não apenas "pensar". Não temos o direito de esquecer que a repartição dos bens está longe de ser razoável. Está muito longe de ser equilibrada. E por "bens" não se pode entender exclusivamente dinheiro, alimentos, vestuário, etc., mas também simpatia, respeito, solidariedade, disponibilidade, amizade, presença amiga.
    A simpatia e a disponibilidade da funcionária dos Correios é um precioso exemplo para outros funcionários das mais variadas instituições, empresas, repartições públicas, etc., e - dum modo muito especial - para tantas pessoas que trabalham, aos mais diversos níveis, em organizações directa ou indirectamente ligadas à Igreja Católica. É também uma flor muito bela e um grande sinal de esperança neste deserto da indiferença.