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    Voluntariado vs Acompanhamento

    Paula Andrade *


    Uma análise atomística do comportamento social de uma qualquer comunidade dos nossos tempos, que se manifesta sempre de forma complexa e nem sempre ordenada, permite-nos distinguir duas grandes categorias de indivíduos: aqueles que abdicam da sua singularidade própria e única, se diluem na multidão e com ela constituem uma unidade homogénea, e no polo oposto, aqueles que não abdicam da sua autonomia, exercitam a sua consciência própria, e projectam a sua liberdade pessoal na transformação activa do tecido social em que se integram.
    No primeiro grupo, identificamos aquele indivíduo que se sujeita a um processo de alienação, que juntamente com mais uns milhares de outros indivíduos, são capazes, apenas devido ao seu elevado número, de constituir uma massa e adoptar até um qualquer ideal de sociedade (sem estar necessariamente a falar de valores), mas, no fundo, a sua acção concorre mais para a heteronomia do que para a autonomia do indivíduo.
    Este é o protótipo da pessoa que quando questionada sobre o porquê de determinada acção, responde, quando muito: “porque agora é assim”. Manifesta uma diminuição progressiva da sua capacidade de análise crítica, definhando numa patética alucinação colectiva de culto ao ideário narcísico de “quem não é por mim é contra mim”.
    Este indivíduo, globalmente individualizado mas que se julga singular, contrasta nitidamente com aquele outro que toma consciência da sua dimensão de sujeito humano, que, não aceitando o determinismo da sua origem, tenta modificar-se e modificar o sistema onde vive, trabalha e se diverte.
    Este sujeito é, sobretudo, um sujeito criativo, que atende ao aqui e ao agora, à importância dos pequenos gestos como novidades sempre renovadas. Este é um sujeito criador da história, sem que o seu nome seja, necessariamente, parte integrante da lista de celebridades que deve constar da nossa cultura geral, ou apenas memorizado para vencer um qualquer concurso televisivo.
    Este sujeito é o Voluntário, aquela pessoa anónima que disponibiliza o seu tempo e o seu saber técnico, o seu tempo e a sua história pessoal, o seu tempo e a sua capacidade de intervenção social, o seu tempo e o seu exercício de cidadania, e a cada dia, ainda é capaz de se admirar com a vida.
    Este é o perfil dos voluntários/as que começam a tecer a rede de voluntários da Caritas Diocesana do Porto, onde cada um quer olhar o outro como alguém com quem estabelece relações não hierarquizadas mas de reciprocidade, não de orientação autoritária mas de acompanhamento.
    Ao adoptarmos o acompanhamento (que deriva de companheiro) como princípio orientador da nossa acção, pretendemos agir numa atitude de partilha, de troca, de comunicação, numa relação de paridade, ainda que numa disparidade de posição (Pineaud, 1998). Quem nos procura não pode ser visto apenas como um portador/a de problemas a resolver pela Caritas, mas como um ser na sua totalidade.
    Esta postura relacional que o acompanhamento implica, obriga a que todos, profissionais e voluntários, se debrucem sobre as suas convicções face aos indivíduos com quem trabalhamos, se questionem sobre quem terá as soluções para os problemas expressos, mas, essencialmente, que acreditem no outro, fugindo à tentação de o substituir continuamente, ou de fazer o caminho à sua frente para lho indicar. Para nós, acompanhamento é uma dinâmica onde as componentes relacional, temporal e espacial se misturam e convivem mutuamente, sendo a fonte e o alimento do próprio processo.
    Christine Josso apresenta-nos três figuras que ilustram bem a atitude a adoptar no acompanhamento a indivíduos que buscam a mudança: a primeira figura é a do amador, a segunda é a do ancião, e a terceira é a do barqueiro. É uma figuração que ilustra bem o espirito que o voluntário deve encarnar, pois quem acompanha deve amar aquilo que faz e com quem faz, deve ter experiência, conhecer as etapas do processo, as duvidas e os perigos, e deve também, metaforicamente, levar as pessoas de uma margem para outra, tendo consciência, porém, que não pode substituir ninguém na travessia.
    Acreditamos, firmemente, que levar o outro a ousar visitar-se e habitar uma face escondida, dar visibilidade às suas motivações, devolve-lhes a liberdade e o poder pessoal para enfrentarem a mudança social, e assim, mais uma vez, concretizarem o mistério de Deus para cada um de nós.
    E o voluntário, qual barqueiro, retoma o caminho para a outra margem...


    * Caritas Diocesana do Porto