[ Especial ]



    Notas de uma peregrinação a Santiago de Compostela

    Peregrinando e encontrando


    Algumas semanas atrás ligaram-me e do outro lado da linha veio a pergunta simples e objectiva : Queres ir a Santiago de Compostela a pé, de 3 a 8 de Outubro ?
    A resposta foi inequívoca e incondicional: Vou !
    Nessa altura nem pensei na falta de tempo, no trabalho acumulado, nas férias a solicitar, na família ou nos compromissos de catequese que se iniciaria por essa altura.
    Desde há muito sentia a necessidade de percorrer esse caminho, esse trilho de que já ouvira falar, o percurso histórico, a lenda e a mística que junta naquele lugar e nas diversos rotas tantos milhares crentes/não crentes que desde a época medieval calcorrearam a direcção de Santiago.
    No espaço de tempo  entre a pergunta e a partida cheguei  a aventar a hipótese várias vezes  de não poder ir mas, em cima da hora, consegui obter autorização de férias, juntar meia dúzia de T-shirts , fato de treino, sapatilhas, roupa interior e fiz-me à aventura.

    Uma semana passada depois de ter percorrido o caminho, procurarei passar ao papel o que senti, vivi e partilhei com os irmãos que se juntaram naquela peregrinação.
    Encontramo-nos na terça, dia 3 de Outubro, e todo esse dia, praticamente cheio de encontros sociais com Câmaras Municipais e outras entidades serviu mais para nos conhecermos. Gente de vários pontos do país, tão diferentes começamos a trocar ideias, identificar personalidades, em ambiente muito agradável, diria quase de absoluto  turismo e com todas as comodidades, viajando em autocarro até Valença onde dormimos a primeira noite no excelente albergue de S. Teotónio.
    Noite bem dormida, com algumas reclamações de ressonos à parte, no dia seguinte começava o desafio que para mim se afigurava de fácil conclusão. Puro engano !
    Na primeira etapa de 30 kms fiquei praticamente devastado dos músculos e articulações que me levaram quase a pensar desistir, abandonar o caminho e seguir no autocarro de apoio. Foi realmente difícil e para quem só vai a pé de casa para o carro e do mesmo para casa , percorrendo os seus 100 m por dia , o impacto inicial deixou-me quase prostrado, e ao chegar ao albergue de Redondela , perguntava a mim próprio como é que iria conseguir mexer-me no dia seguinte.
    Porém, por esse caminho de dor, por aquele final que não mais chegava, pelo olhar da minha companheira de caminho, pelo joelho dela, pelas íngremes subidas e descidas, fui encontrando outras forças, conversando com os outros, animado por eles e por vezes olhando subtilmente o céu, questionava como é que o humano se pode chegar a Ele.
    Começava a compreender como era possível os  exemplos de outros homens e mulheres que tomam a peito a missão de caminhar por estradas para Fátima, muitos mais quilómetros pela frente, ao sol, à chuva, ao vento, próximo de camiões e carros a grande velocidade que passam por nós como se não estivesse lá ninguém.
    Nessa noite e depois de subir escadas a dois tempos, entre gemidos comuns a outros irmãos do caminho, adormeci rezando e sem saber muito bem o que me acontecia.
    Outro dia virá !
    O Senhor nos alimentará e fará renascer o Sol.

    No dia seguinte o dia amanheceu com chuva. Mas estranhamente, pelas 7 horas da manhã, encontrando  nos rostos  cansados de todos um semblante de tanta confiança , e após doses de pomadas musculares, o corpo reagiu muito bem, o espírito fortaleceu-nos e todos conseguimos retomar o caminho.
    Etapa pequena cerca de 12 kms que nos fez chegar mais cedo ao descanso, um banho retemperador e uma noite excelente moralizaram bastante e fizeram-me pensar que afinal quando tudo parece irremediavelmente perdido, há sempre esperança e alento que nos fará caminhar com mais vontade.

    Caminho, Caminhar, caminhando, este caminho tem duas direcções que nos leva e nos traz. Leva-nos à dor, ao cansaço á poeira ao desfalecimento, e traz-nos união, amor, forças, sentido de comunhão, porque estamos todos ao mesmo nível, no mesmo patamar, percorrendo as pedras que tantos outros pisaram, se calhar sem os meios que temos hoje.
    Este caminho nos traz também a possibilidade de encontrar outros irmãos, as saudações tão genuínas e alegres das pequenas aldeias por onde passamos, os cânticos que entoamos, as orações que fizemos, a espiritualidade do nosso companheiro João e o ânimo da Irene, a comunhão de experiências nos diálogos com companheiros peregrinos a quem a vida já trouxe tanta tristeza e dificuldade só me deu coragem de prosseguir cada metro, cada quilómetro. Em cada um que fui conhecendo fui ganhando mais com os seus testemunhos, com a sua garra , com o facto de afinal verificar que o Senhor tem-me dado tanto e a quem eu tinha de agradecer na sua casa . Claro que Deus está em todo o lado, mas a simples acção de caminhar para Ele vai fazer sentir-nos muito mais próximos da sua presença  e da sua verdade.

    Ao terceiro dia já estava “mecanizado”, fisicamente difícil mas por encontrar tantos exemplos de vivência, tantos rostos que me sorriam ao passar, tantas arvores carregadas de verde esperança, tantos lamaçais que sujavam as sapatilhas mas lavavam a alma, ganhava mais alento e só via mesmo no horizonte os picos da catedral onde desejava chegar para colocar no altar do Senhor a minha oferta, o meu ser, os meus anseios, os meus pedidos, o meu esforço e as minhas orações.

    Estou certo que não quero de Deus uma relação de causa/efeito, pedir para ter, reclamar para conseguir. A nossa relação com Deus é muito mais que isso, é entregar-se para viver, é dar-se sem condições, sem esperar beneficio porque o Senhor está atento e olha por todos nós, assim possamos ser suas testemunhas e ter uma vida e de amor aos outros.

    Até domingo dia 8 de Outubro, os dias passaram muito rápido, a chuva foi desaparecendo e o Sol radioso acolheu-nos em Santiago. A nossa chegada deveria ter sido mais unificada, o grupo partiu-se muito e na minha perspectiva deveríamos ter chegado todos juntos, até de mãos dadas, mas o tempo estava a escoar-se e o programa a ficar atrasado.
    Recolhemos a certidão (Compostela ) e participamos na Missa do Peregrino que termina com o rito do “voo” do turíbulo, algo de espectacular pelo ambiente que se cria e pela música do imponente órgão de tubos que positivamente envolve todo o povo presente.
    Muitíssimo bem acolhidos por um representante da Xunta de Galicia que nos deu uma excelente explicação da construção da catedral e sua envolvência e história  fomos também premiados com um almoço final , uma palestra e um agradecimento final aos elementos da organização que nos convidou para o evento.
    O nosso cantar foi lentamente fazendo desaparecer todos os queixumes dos primeiros dias e pude verificar que alguns valores e sentimentos foram entrando pelo nosso grupo dentro, encontrando em cada jornada  afinidades que no final tinham um denominador comum: o apóstolo , enviado por Deus acabou por ser 2000 anos mais tarde mais um exemplo  de evangelização. E não poderemos nós ser também canalizadores dessa mensagem? Não poderemos ser nós transmissores do amor e do afecto, dando a mão a quem precisa , ser o bordão ao longo do caminho penoso para outros ?
    Este caminho também ajudou a encontrar-me. Afinal o trabalho tão assoberbado, a ditadura do telefone , a inundação do e-mail também podem ser combatidos desde que possamos dizer sim a outras solicitações porque  a nossa vida não se esgota em valores que pensamos ser únicos.
    Não pretendo repetir a experiência tão breve, em especial aquelas etapas mais duras onde cruzamos, mas tenho a certeza , que se Ele me deixar, quero ainda percorrer os trilhos de Santiago em especial todos aqueles em que ouvimos os pássaros, as aguas a correr, o bater  dos nossos passos sobre as pedras redondas do percurso , e aquele silencio da nossa alma ao passar pela Natureza que o Senhor nos deu para nos fazer lembrar que ele lá está.
    Hoje na missa de domingo ouvi uma coisa que muito me impressionou :
    “A nossa vida é uma caminhada. É a andar que se faz caminho, juntamente com os outros, em solidariedade. Connosco caminha o Senhor Ressuscitado. Uma presença discreta , que só pela fé se consegue perceber”
    Curioso ou talvez não... o Senhor fala-nos, basta ter o ouvido atento e disponível.

    (Participantes na peregrinação promovida pelo Geotur de 3 a 6 de Outubro de 2006)