Fazendo memória de Maria de Lurdes Pintasilgo
Quando meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar (...)
E os cabelos doirados da floresta
Como se eu não estivesse morta
Sophia de Mello Breyner
A Maria de Lurdes não morreu. Está viva no testemunho, nos dinamismos que criou, nos valores que defendeu, na novidade que contagiou, na profecia que gritou, no sonho e na utopia, porque o sonho comanda a vida rumo è cidade nova.
Cidade nova construída com doações apaixonadas, com lágrimas sentidas, com impasses de fermento, com alegrias de sabor amargo e doce dos frutos que passo a passo vemos crescer e amadurecer.
Muita sementeira, muita vigilância crítica, muita aposta repetida e sempre nova. De longe e de perto a corrente engrossa e o caudal forte rega a margem por onde passa rumo ao mar batido, onde a barca dos pobres resiste na esperança de novas pescarias.
Maria de Lourdes não morreste. Hoje fazemos memória, actualizamos, sentimos a tua força ressuscitada, com os muitos que tiraste da morte da resignação, para a vida do combate pela vida.
Vamos ser dignos do teu testemunho, da tua paixão pela grande causa da dignidade e da liberdade.
Valerá a pena a tua doação se dela tirarmos o vigor de quem morre, porque acredita na integridade dos homens e dos valores. O teu corpo não aguentou a dor do coração e decidiste dar-te como semente que queres ver germinar em movimentos de mulheres e homens que puxam o mundo para a frente.
Aqui hoje é o presente que nos desafia, é o futuro que grita por nós com ecos da tua voz.
Agora justaste-te aos que como Tu se deram, e estão contigo no Reino da Liberdade. Comunicai connosco na energia da memória e do Espírito e o longe se faz perto e o perto se faz irmãos.
Agora recriada, deste sentido aos passos com que ajudaste a tecer a nossa História, feita de chegadas e partidas. Na luz fulgurante do Ressuscitado nos ensinaste a "arte das passagens", que são partos dolorosos nem sempre conseguidos. Agora chamas-te Páscoa, ou seja, Liberdade, porque entrega completa. Aqui está o sentido que reconstitui a realidade do tempo e de nós próprios, na aurora do "dia inicial inteiro e limpo onde emergimos da noite e do silêncio e livres habitamos a substância do tempo" (Sophia de Mello Breyner)
Bebendo desta fonte, queremos contigo ser fiéis até ao fim.
Bernardino de Queirós Alves