C. F.
Contrariamente ao que declaram alguns e algumas mais imobilistas, cumpre-me declarar que (e desculpem-me os comunicadores entendidos de não declarar de que) não tenho quase nada contra as obras na cidade (e até fora dela). Digo quase nada, porque há uma pequeníssima contradição que me faz afastar, contrariado, desta veneração pelo novo: é que não se façam quando se fazem, e que permaneçam sem fim no mesmo estado intermédio. Mas isto é um mal antigo, de incompreensíveis e nacionais contornos.
Por dever ou por devoção, passo agora com frequência num desses lugares privilegiados da cidade onde não se fazem as obras quando elas se estão a fazer. Verifico coisas lindas, verdadeiramente dignas daquela observação deslumbrada que o nosso altíssimo Presidente conseguiu vislumbrar na atitude dos turistas: a primeira é que quando se começam obras, acabam os direitos do utente da via, até que haja algum acidente que obrigue a que se ponham as trancas depois do roubo - acabam-se as passadeiras, esventram-se os passeios, que ficam transformados em parques de estacionamento e se queres passar para o outro lado tens de arregaçar as calças e ir a correr solicitar a escova de engraxar que agora dizem que a Câmara oferece. A segunda é ainda mais linda e resulta de uma observação mais cautelosa e distanciada: é a movimentação dos trabalhadores no terreno de jogo, perdão, de trabalho. Aquilo obedece a uma táctica bem estudada, pela colocação das pedras dentro das quatro linhas. Enquanto o "craque" ( que é aquele que custa mais dinheiro que os outros) da equipa manipula com inefável ardor uma daquelas modernas máquinas roncadoras, três ou quatro jogadores de campo situam-se estrategicamente ao lado, como suplentes em banco futebolístico, e observam, encostados com segurança nas pás e nas picas, coisas obsoletas que ainda se usam. Aguardam pacientemente a sua entrada em jogo. Entretanto, o treinador, figura invisível e providencial que observa ao longe todas as coisas e define tácticas e estratégias, deve estar a olhar aquilo tudo, do alto da sua sabedoria. Depois, abre-se um buraco num qualquer sítio, colocam-se as novas guias para os passeios aqui e além, e em vez de se levarem os trabalhos até ao fim, deixa-se a obra parcialmente feita à espera indefinida de que outra qualquer brigada venha completar o que ficou suspenso. Entretanto os trabalhadores, no seu afã circular, foram para outro lado preparar outro espaço para poder igualmente ficar à espera. Este é na verdade o grande mistério de toda aquela ópera (que como se sabe quer dizer "obras") que nos dão: que se façam as coisas por forma a que fiquem por fazer para poderem outra vez ser feitas, naquele passo indeciso da eternidade da sua duração, e para que entretanto possam ser apreciadas por turistas e poéticas figuras passantes.
Mas isto é uma qualidade antiga da nossa forma de estar na cidade: que o que devia ter sido feito ontem fique à espera de ser feito amanhã. E que quando se faz, não sirva para usar, porque não se pode lá chegar por falta de acessos. Ou então que quando se concluem e põem ao serviço os melhoramentos, estes se tornem inúteis por má ordenação viária, como acontece no conhecido túnel da rua Faria Guimarães, que foi feito para escoar o trânsito "com rapidez" para o exterior da cidade. E agora, o que acontece?: que lhe puseram um semáforo à entrada e outro à saída, e o túnel, que cumpriu a virtuosa missão de servir para se ganhar eleições pela sua pretensa eficácia, se encontra agora transformado numa espécie de forno poluente, em que os condutores passam minutos ou horas a absorver os gases dos escapes, em longas filas, à espera indefinida de uma luzinha verde que os liberte daquela poluição, às vezes também sonora. Entretanto vão ouvindo as informações de trânsito que os esclarecem de que aquela zona está congestionada.
Outra cousa que nunca compreendi: que para se arranjarem cem metros de rua fossem necessários tantos dias, tantos meses, tantos anos. Defeito meu, está claro, porque as razões são muitas, desde o estado do terreno, que já se sabia que era duro e difícil de roer, até à má programação e má ou lenta execução. E quando se acabam, quando se vê a luz ao fundo do túnel, ao fim dessa eternidade, não servem, são inúteis. Os exemplos abundam.
2. A imaginação do nosso altíssimo presidente na apreciação deste fenómeno tipicamente portuense das obras infindas é digna de figurar em anais que a perpetuem. Descobriu, com indizível olho clínico, que os turistas apreciavam imenso estas habilidades e iam tão contentes e certamente tão rápidos daqui para fora, que prometem cá voltar quando a coisa estiver pronta. Entretanto, vamo-nos libertando deles, porque turista é praga para toda a obra. Descobriu depois uma nova mística: a mística do buraco. Há que propalar aos quatro ventos que o bom cidadão, o consciente, o interessado, o verdadeiro artista e descobridor da natureza e da cultura, o argonauta do futuro se deveria armar de máquina fotográfica e de capacete na cabeça, e deslocar-se de lupa em punho por essas ruas fora a observar e fotografar os buracos, porque, afirma, nunca mais terá a oportunidade de o fazer. Parece que o melhor buraco era o da praça D. João I, verdadeiramente digno da garganta do inferno de Dante ou dos abismos que invocam abismos. O resultado é fabuloso: uma plêiade de cidadãos transformados em artistas fotográficos enchem a cidade, as capas das revistas da moda, as páginas de jornais, os álbuns familiares, com fotografias de buracos, porque, como o buraco é por definição um espaço vazio, e como de nada nada se tira e a nada nada se dá, as fotografias dele saem sempre bem: nem é preciso regular a luz, porque qualquer escuridão os alimenta.
Veio depois a grande oferta da época natalícia, aquele brinde que qualquer bom comerciante oferece por terem preferido os nossos produtos e os nossos serviços: é o chamado kit (em português quite) de limpeza para quem tiver a rara infelicidade de sujar os sapatos na lama das ruas - coisa tão preciosa que só se encontra com esforçada e persistente busca. Temos então o nosso município a engraxar os cidadãos com quites de limpeza, para que, limpando os sapatos, se esqueçam virtuosamente, como a mãe depois de dar à luz, de que os sujaram porque não tiveram outro remédio. Feliz foi a culpa, que tão generosa e inolvidável oferta mereceu.
Eis aqui as razões pelas quais eu tanto aprecio as obras na cidade: pela sua rapidez, pela atracção turística em que se transformaram, pela mística do buraco (que não é do ozono) e pela mais que todas sublime dádiva dos sapatos engraxados!