Ferreira de Brito
Dos tempos felizes em que eu me passeava absorto pelas margens do Sena, faminto de aprender as belas coisas da superior cultura francesa (contra a qual hoje qualquer badameco americanizado atira pedras dizendo sensaborias ou bacoradas), continuo seduzido pelas imagens dos muitos «bouquinistes» de Paris, fruindo um prazer que os meus olhos ainda hoje guardam como imprescritível recordação. As pernas trôpegas e as vistas irritantemente aguadas recusam-se agora a uma longa caminhada de descoberta de espécimenes velhos e raros, nacionais e estrangeiros, baratos e caros, roídos ou bem conservados. Num desses dias, este francófono, confesso e impenitente que ainda sou, mercou, sem marralhar, claro, dois exemplares belamente ilustrados da Biblioteca Dos Bons Romances - Jornal Ilustrado. Na selecção, entravam os romances de autores de nomeada do século XIX, uns mais famosos do que outros, mas todos nomes sonantes. Até porque o conceito ético e estético de «bom romance» não é de discernimento imediato e passa por filtros críticos mais ou menos apertados.
Eram esses romances publicados em folhetins, porque havia muito trabalhinho a fazer em péssimas condições de higiene e de dignidade humana nas fábricas de tecelagem, que não deixavam nenhum tempo para ler. A instrução era uma faca de dois gumes. Os «canudos» de Lião não tinham férias grandes nem pequenas e nem sequer excogitavam no subsídio de Natal
Analfabetos ou quase, não dispunham de tempo para demoradas leituras. Por isso, iam lendo romances em folhetins, os quais, mesmo quando maus, eram sempre melhores do que esse subproduto tóxico, que são as enfadonhas telenovelas lusas e brasileiras dos dias que correm por aqui e muito mal correm de verdade.
Num desses folhetins, está incluído o romance (menor) de Lamartine, de nome Jacquard, em que o autor reflecte sobre as condições da feitura da História em plena época de passagem de uma sociedade rural a uma sociedade industrial. Um «canudo» lionês poderá ser um herói romanesco, com tudo o que isso implica de ultrapassagem de mentalidades e de hábitos, tantas vezes ancestrais, deixando a imortalidade para os «grandes» actores da História? Aos homens simples, aos ditos «trabalhadores da indústria» aos tecelões da seda de Lião, só restará um espaço anónimo de afirmação discreta, que parece não ter peso de nenhuma espécie sobre a História globalizante nos seus desencontrados movimentos e ritmos sociais.
Jacquard é o exemplo padronizado do homem vítima dos excessos de fadiga, de miséria, que, pela benévola lente socialista do poeta de Jocelyn, busca para os seus confrades uma hipótese de entendimento possível entre o homem da indústria, forçando a natureza, e o homem rural, vivendo ao ritmo do que a terra produz pela força coadjuvante do seu inteligente trabalho.
Foi a Revolução Industrial de Lião que serviu de espelho deformado a todas estas deformadas comparações entre estes dois mundos. Lamartine conhece bem a condição e os costumes dessa tribu de parias européens, chamados «canudos», quando cotejados com as condições humanizantes (mesmo que pobres!) da cultura da terra. E, para se revestir de maior autoridade, cita o poeta escocês Robert Burns, autor das Canções populares da Escócia, cheias de humor e de ternura, quanto a mim a melhor síntese da necessidade de uma luta equilibrada entre a Natura e a Cultura:
«Foi o homem que fez as cidades,
Foi Deus que fez o campo!»