Ilissínio Duarte
Já viu devagar os azulejos da estação? É que muita gente só vê o quadro dos horários e há que correr. Era costume antigo o chefe da estação gritar: Par-ti-da! Eu temo ouvir qualquer dia: Partido, referindo-se aos painéis de azulejo, que estão protegidos, julgo que com adesivo plástico. Quantas nezes tenho indicado a estrangeiros as maravilhas que ali estão!
Hoje falo para portugueses. Já muita gente tem visto gravuras do Convento da Ave-Maria que se deve a El-Rei Dom Manuel I, que tinha elevado gosto monástico, que o levou a criar o Mosteiro de S. Cristóvão de Rio Tinto, São Salvador de Vila Cova de Sandim, São Salvador de Tuías e Santa Maria de Tarouquela. O Porto merecia um mosteiro compatível com a Cidade, e assim foi construído o da Ave-Maria. Esteve para ser para as dominicanas, mas El-Rei resolveu dá-lo às beneditinas. Começou a ser construído em Junho de 1528. Em 1535, uma nova comunidade a que presidia a abadessa Dona Maria de Melo, já no reinado de D. João III e a mesma abadessa passou a orientar também os outros conventos já acima citados. Passados mais de duzentos anos, um grande incêndio e enormes danos no Convento da Ave-Maria. Na renovação foi dado novo estilo. A capela-mor foi aumentada no século XVII. Era prelada D. Vitória Maria da Cunha e diversas que nem sempre se entendiam. Com o Constitucionalismo, as ordens foram extintas com influência de Joaquim António de Aguiar (vulgo mata-frades). O rapianço liberal teve talvez um rebate de consciência e foi determinado que enquanto não morresse a última abadessa, as freiras poderiam continuar a viver no convento. Não foi ocupado pelas repartições públicas quando morreu a abadessa Dona Maria da Glória Dias Guimarães. Foi decidido que o local do convento da Ave-Maria seria ocupado pela estação dos caminhos-de-ferro. Os que por lá passaram, durante o derrube, foram encontrar um quarto modesto, como um vulgar quarto de uma velhinha sem família, asseada, mas pobre.
Enquanto pode, foi amiga das crianças a quem dava brinquedos. Havia livros de cantochão em pergaminho e iluminuras.
Ficou a memória dos abadessados, as noites de outeiro, com poemas de Faustino Xavier de Novais, Guilherme Braga, Alberto Pimentel e o inevitável Camilo, onde trocavam poesia por doces conventuais, vinhos generosos e os sorrisos de freiras não vocacionadas, que os paisinhos punham lá, como casa de correcção. Agora só para nós: eu tive uma namoradinha, externa do Colégio de Nossa Senhora da Esperança, ela com uns 15 anos e eu aí uns 17 e 18. Foi nos anos 40 do século XX. Ia esperá-la ao colégio acompanhado de um amigo e ela acompanhada de suas colegas e amigas até que um dia o pai a ameaçou com o internato no citado colégio. Acabou-se. Às vezes, quando nos encontramos, já adultos, tratavamo-nos por você. Há muitos anos que não nos encontramos e ela certamente já não ensina filosofia. Mais importante que tudo isto é que a estação de S. Bento mantenha a mesma beleza, de gerações, e lhe retirem a maquilhagem de adesivo plástico sem riscos para os azulejos. Esquecidos há muitos e eu ia-me esquecendo de informar que os construtores da estação tinham esquecido construir as bilheteiras integradas no edifício, e tivemos, durante muitos anos, bilheteiras de madeira, se me recordo fielmente (em latim si rite recordor).