M. CORREIA FERNANDES
Deixemos, pois, de parte as polémicas que algumas destas obras provocaram, situemo-nos nos seus estudos sobre o épico.
A Luis de Camões dedicou Aquilino Ribeiro os seguintes estudos:
a) Camões e o frade na llha dos Amores, publicado em Cadernos Históricos (1946), e depois incluído com outros estudos no volume Camões, Camilo, Eça e alguns mais (1949), onde surge igualmente o estudo A edição prínceps de Os Lusíadas, que no mesmo ano foi editado separadamente com várias reproduções;
b) Luis de Camões, fabuloso, verdadeiro. Ensaio, publicado em 1950, em dois volumes. Ainda que a este trabalho de grande interesse histórico-literário, sobretudo por ter constituído uma reviravolta epistemológica na apreciação da vida de Camões, seja designado por ensaio pelo seu autor, ele constitui uma espécie de romance histórico, onde o leitor pode encontrar, de forma entrosada por uma perspectiva original, a pesquisa sobre a realidade e a capacidade de fingir aquilo a que Herculano chama o verosímil , histórico ou da tradição, ou a capacidade de dar sobre a história que é possível estabelecer a visão ficcionalmente coerente, e enquadrada pelos demais dados histótico-sociais da época, que tornam plausível, ou ao menos possível, tal interpretação.
Em muitas circunstâncias e em numerosos passos da biografia que vai elaborando, apercebemo-nos de um Aquilino estudioso dos documentos e tentanto retirar deles luz nova sobre pretendidos dogmas biográficos; mas em muitos outros sentimos o Aquilino romancista e efabulador, a retirar subconscientemente da sua poderosa e inesgotável veia de construtor de histórias os materiais narrativos que preenchem os amplos espaços vazios e nebulosos de uma biografia que nunca ninguém pôde cabalmente reconstituir. E se o leitor pressente a cada passo um arguto sentido da justeza da observação e da dedução, não raro também se sente enlevar nas asas de uma imaginação por certo brilhante mas não fundamentadamente histórica. Procurando enquadrar os episódos brumosos da vida camoniana no contexto social que era o de então, quer em Lisboa quer na Índia, retira desse contexto elementos de reconstrução ou re-imaginação plausível do quotidiano de Camões. Continua no entanto a pairar uma inevitável bruma envolvente, não já a que construiram os biógrafos endeusadores ao longo de quatro séculos, mas a que nasce da aplicação ao particular de dados gerais. E o que motiva todas as biografias de Camões é justamente o facto de que ele se distinguiu de todos os demais, ainda que tenha vivido pobre e miseravelmente, a assim morrendo, como lhe escreveram na pedra que por túmulo lhe puseram.
A análise do Aquilino que lê Camões, pode levar-nos a captar a circulação dessa espécie de seiva literária entre dois geniais nomes da literatura portuguesa, entre dois dos maiores buriladores da língua, e que também são, aliás como tantos outros, dois grandes exilados da pátria, entre os quais existe uma inegável simpatia (no sentido lídimo dasyn-patheia, essa capacidade de sentir juntos) criadora.
O maior mérito de Aquilino em relação a Camões terá sido a tentativa de desmistificar muito daquilo que de lendário e fictício estava a seu tempo estabelecido e aceite, quase sem discussão, acerca do poeta, que havia sido transformado, quer por força de estudos imaginativos, pouco conhecidos do grande público aliás, que haviam guindado a sua personalidade humana e literária, aquela por causa desta, a uma aura diáfana quase irreal de semideus oculto e intangível, por obra do que a umas suposições se foram seguindo outras, e como nada era seguro, os campos do supor eram imensamentc vastos. Por outro lado, havia a componente distorcedora da propaganda oficial e escolar, que como é sabido escamoteia sempre toda a crítica, e que aproveitava a situação obscura da vida para considerar o poeta como a distante e intangível figura suprema do génio nacional, que teria obviamente que ser nobre, equilibrada, impoluta, estilizada.
A truculência do seu temperamento aguerrido e apaixonado, o seu espírito galante e amoroso, de iradas e contundentes reacções, constituem temas de predilecção para o estudo de Aquilino, que quer mostrar um Luis Vaz inconformista e avesso às disciplinas sociais, antes dando livre curso à expressão da sua riquíssima sensibilidade, ultrapassanto com facilidade normas e convenções. Não será difícil discernir o que de subversivo e revolucionador estará contido numa tal análise, desde logo não grata às assépticas e desumanizadas visões oficiais, de herança romântica, do poeta da raça, do grande cantor dos feitos nacionais e das glórias da nação. Desmistificando Luis Vaz, o homem sujeito às misérias e grandezas dos demais mortais, aos olhos do leitor aquiliniano robustece-se um Camões, poeta inconformista, e um poema épico que, sem deixar de ser o da raça, se torna o canto contraditório de um povo amassado na dureza da vida, mas combativo e criador. Por outro lado, como contraponto, ficava a imagem de um poder oficial esvaindo-se pelos seus burocráticos canais de comunicação e de sustentação, incapaz de comprender o génio que morre na penúria pelas ruas de Lisboa, e é sepultado à porta do cemitério Santa Ana, da banda de fora, chãmente.
Denuncia ainda Aquilino a conjura de silêncio contra o homem genial e infeliz, em que foi envolvido por seus contemporâneos, para concluir, como explicação para o facto:
Para o mutismo que se fez à volta dos Lusíadas só há esta chave: desconhecimento. Custa a aceitar, mas se nos colocarmos bem no meio próprio, talvez que a nossa relutância bata em retirada Não havia à data imlprensa, nem boa lnem má. Tudo o que diz respeito ao mundo das letras e abrange a vasta fenomenologia do espírito, que se propaga hoje por meio do jornal, não tinha ao tempo outro veículo que não fosse as chamadas bocas do mundo badalando nos soalheiros, de conversa na botica, nas visitas, em casa do mercador de livros. A divulgacão fazia-se de viva voz. Acrescia que, àquela altura do ano de 1572, a atmosfera era pouco propícia à floracão das letras. Estava no choco a grande e louca aventura. Nela se concentravam todas as atenções e não havia animo ou ensejo para mais nada...
Importa igualmente citar, para concluir esta genérica revisão dos pontos mais salientes da vida de Camões discutida por Aquilino, as palavras com que termina o seu ensaio em referência, e que põem de manifesto um aspecto não suficientemente evidenciado em muitos comentários:
Por conduto de Castela chegaram os portugueses ao conhecimento de Luís de Camões. Para alguma coisa, mais do que expiação, havia de servir o jugo estrangeiro no povo degenerado!
Porém, se a Aquilino creditamos o mérito de desmitificar (no sentido pleno de abordar, discutir e destruir os mitos aceites) muitos aspectos da vida de Camões, no entanto fica-nos a impressão de que a própria confissão do épico, a quem venera, exigiria a Aquilino uma maior atenção ao honesto estudo, e mesmo ao engenho que aqui vereis presente. Com efeito, se é dissecada a longa experiência e a dureza de vida do poeta incompreendido, não se vê como um Camões pícaro, vivedor e folgazão pudesse compaginar isso com um estudo permanente e honesto, que justifique a monumental erudição que patenteia na sua obra, o profundo sentido moral e crítico que surge a cada passo dos Lusíadas e da lírica, coisas que exigem por força estudos sistemáticos que não podem ser reduzidos raquiticamente aos hipotéticos da juventude escolar. A referência (importantíssima e geralmente pouco acentuada pelos críticos) em que Diogo do Couto fala com admiração do Parnaso de Luís de Camões que ele ia escrevendo ao longo da sua viagem, e à erudição, doutrina e filosofia que continha, e que é a mesma que claramente manifiesta nos textos que conhecemos, falam de um Camões sábio (no sentido mais denso da palavra), com profundos e disciplinados hábitos de trabalho e de estudo, com gosto pelo saber e pela cultura, que supõem um homem com forte auto-domínio, capacidade de concentração e de afastamento da vida buliçosa e superficial dos escudeiros lisboetas ou da soldadesca da Índia (para quem trabalhava escrevendo), para além do talento, do engenho, de que era superiormente dotado. Talvez a grande falha, injusta e imerecida para o épico, deste estudo, ou ensaio, como lhe chama, brilhante aliás, de Aquilino Ribeiro, seja a de não ter feito ressaltar, como fez para os muitos outros aspectos humanizantes da sua vida, esta faceta funda mental da existência de un homem superior, que viveu pobre e miseravelmente, e assim morreu, mas que entretanto deixou uma das mais brilhantes e grandiosas obras líricas e épicas toda a Humanidade.
NOTA As referências deste texto a Camões são retiradas do capítulo Aquilino Ribeiro e Luís de Camões, inserto no nosso livro Pós Leituras Ensaios de Literatura Portuguesa e Comparada, Porto, Ed. Asa, 1999.