M. C. F.
A parábola evangélica do trigo e do joio (Mt, 13, 24-43) é uma das passagens bíblicas mais glosadas. Já romance de Fernando Namora com esse nome, O trigo e o joio, datado de 1954, transportava para a vivência do mundo rural esta dicotomia do confronto dinâmico entre o bem e o mal, cujo significado mais profundo é a negação da visão maniqueísta, ao propor que o bem e o mal não se excluem, mas convivem de forma criativa, como de um equilíbrio instável na condição humana. A visão maniqueísta era a dos ceifeiros da parábola, que queriam arrancar o joio para que ficasse apenas o trigo. Sábia é a verificação do senhor da seara: não o façais, porque pode acontecer que ao quererdes arrancar o joio arranqueis também o trigo. Esta frase constitui uma espécie de alerta contra a falibilidade e o enganos dos juízos humanos: é preciso um julgamento distanciado no tempo e na condição vital para que se capte plenamente onde está o bem e o mal. Há que esperar pelo tempo da ceifa: aí será possível um julgamento equitativo e responsabilizador. O lugar-comum de que para muitos acontecimentos é preciso o juízo da história é uma versão redutora mas real deste "esperar para a hora da ceifa". O povo diz muitas vezes o provérbio: há males que vêm por bem. O que um dia nos pareceu mal, ou foi positivamente mal, pode ter engendrado caminhos de bem: a conversão, a transformação pessoal ou social, outra visão do sentido da vida. Quantos santos o foram porque foram capazes de superar o mal? Pedro, ele próprio fruto desta superação do mal, supunha a mesma dinâmica quando sugeria: não pagueis o mal com o mal, mas superai o mal pela prática do bem (1 Pet, 3,9)
O mundo de hoje, como o do passado, é o mundo da convivência entre o trigo e o joio. O discernimento pessoal, a descoberta da justiça evangélica, as dinâmicas da paz e do amor fraterno deverão operacionalizar o crescimento do bem.
Os inimigos que semeiam joio na sociedade estão por todo o lado: nas bombas dos terroristas, nas imagens das pantalhas, nos projectos sociais e culturais que exploram o sexo e a violência, que agudizam conflitos onde era possível encontrar colaboração, que exacerbam diferenças de cor e raça, que injectam na sociedade a atitude da amoralidade, dos comportamentos desviantes... O joio tornou-se muito mais visível e actuante que o trigo. Sempre crescem mais as ervas daninhas.
Porém, o mundo possui também as sementes do bem: o espírito fraterno e solidário de pessoas e estruturas que vivem para além do interesse pessoal e material; os gestos de abnegação e de dedicação; o sentido da justiça que incorpora o próprio discurso político e social (é preciso passar das intenções às atitudes). Esta espécie de sensibilidade para os valores (cuja necessidade é cada vez mais apregoada), a colaboração entre sectores sociais, novas dinâmicas do amor e construção familiar, a sensibilidade à centralidade da pessoa e ao respeito pelos direitos humanos - eis outros tantos caminhos do bem que a sociedade hoje quer percorrer. Há sempre uma esperança que não engana.