À conversa com Ruy de Carvalho, Actor de carreira sexagenária
A interpretação de Merlin por Ruy de Carvalho, na peça Morgana, em cena no Auditório Miunicipal de Gaia, permitiu a este magnífico actor regressar ao TEP 42 anos depois. Em 1964, Ruy de Carvalho foi director artístico, actor e encenador da companhia de teatro. A peça ainda pode ser vista até 10 de Dezembro. Daí esta entrevista, no camarim deste ilustre homenageado.
No final da estreia do 206º espectáculo do TEP, o actor - com 60 anos de carreira, quase 80 de idade e 53 anos de casado - recebeu a medalha de Mérito Cultural e Científico de Vila Nova de Gaia, entregue pelo Presidente da Edilidade, Luís Filipe Menezes.
VP Começava por perguntar que força(s) lhe move(m) para, com quase 80 anos, continuar bem vivo e activo entre nós?
Ruy de Carvalho (RdC) As forças vêm, naturalmente, do corpo que consente. Se eu tivesse vontade intelectual, mas o corpo não funcionasse talvez não conseguisse actuar.
VP Mas tem algum segredo especial? Como uma alimentação cuidada, o exercício físico
RdC Não faço nada de especial. Faço, de facto, muito exercício e não tenho vícios: não fumo nem bebo chá nem café, pois recupero agora de problemas de tensão.
VP Vendo esta tal força como um outro ente poderoso, fruto da sua vivência espiritual, como a descreve?
RdC Há qualquer coisa que emociona e que fica. Para muitos não será Deus, mas para mim é, com certeza! Ele me ajuda e me destinou esta sina que tenho de ser actor. Escolhi porque Alguém me indicou o caminho ou me deu a facilidade de escolher o caminho.
VP E de que forma testemunha este caminho dado por Deus, que fez seu?
RdC Um dia perguntaram-me na Paróquia de Olivais o que é que eu pedia normalmente a Deus. Eu não peço nada, apenas ofereço o meu trabalho, quer dizer, não estou a dar mais trabalho (risos). Eu é que tenho de me ajudar a mim próprio. É a força da fé.
VP Para além de oferecer também agradece os dons e dádivas presentes?
RdC Agradeço o que vai acontecendo, sem fazer disso superstição. É uma força que me anima. Não faço algo que muitos que são ateus fazem: benzerem-se antes de entrarem em cena. Acho que não é preciso. Basta que entregue o meu trabalho. Benzer-me seria uma cobardia da minha parte, por parecer só me lembrar dEle naquele momento. Se ofereço sempre o trabalho é um serviço que faço, porque Deus me criou e criou esse trabalho, ser actor. E acho que não é só dentro da Igreja que se actua que se pratica a fé e se mostra ser católico , é essencialmente fora dela.
VP Após 6 décadas de notável e brilhante carreira artística que momentos pessoais destaca como mais e menos positivos?
RdC Os menos positivos têm a ver com a cultura em Portugal, de certa maneira, pouco apoiada. Eu vivo no meio disso, por isso sei. E eu sou um dos felizardos, porque tenho algum apoio. Mas muitos da minha classe não. A parte cultural do País, propriamente, está muito abandonada. Devia haver mais cuidado, porque um povo culto avança mais depressa. Em democracia não tem que haver medo, mas sim avanço!
VP Embora só tenha referido esses menos bons, certamente na balança pesam muito mais os momentos bons, óptimos e excelentes
Quais são os que retém na memória?
RdC São muitos! Não tenho filhos especiais. Digamos que o primeiro está sempre na memória, por ser o primeiro, e o último também está, por estar nele a peça Morgana, de Shakespeare, versão esta escrita pelo meu genro, Paulo Mira Coelho. Nela faço de Merlin.
VP Como recordar é viver, o que recorda desse seu 1º acto artístico?
RdC Já foi há muitos anos! Tinha 8 anos, quando entrei num palco para representar. Estava em Covilhã, onde vivia na altura. A história era a da Carochinha (risos). Tinha que ser algo infantil. E é curioso que tinha sido para uma instituição religiosa. A minha é que fez a animação musical: compôs a música e tocou. E eu lá entrei, com receio. Ao longo da minha vida houve esta ligação: a minha mãe pianista, os meus irmãos actores, embora o meu pai fosse militar. Mas foi assim que conheceu a minha mãe. E tenho também um filho actor, o João.
VP O sucesso passa simplesmente pela grande procura de bilheteira, casa cheia e muitas palmas no fim? É simplesmente isso ou é mais do que isso?
RdC Há tantas coisas que eu tenho tido sucesso e não tenho tido público e há coisas com menos sucesso e com muito público. Depende do gosto das pessoas e da motivação de quem faz e de quem assiste.
VP E sente-se motivado para fazer mais uns papéis do que outros? Certamente já fez de tudo
RdC Como actor devo fazer de tudo, se bem que há estilos que faça melhor do que outros. Mas acho que um actor nem deve escolher aquilo que faz. Quando escolhe está errado.
VP Nunca se sentiu na necessidade ou no dilema de escolher, por exemplo, por colisão temporal de duas ou mais peças em que o queriam?
RdC Nunca escolhi por mim o que representar. Fiz aquilo que me atribuíram. Agora já aconteceu muitas vezes ter peças para fazer ao mesmo tempo, mas decido por quem chega primeiro. Não há nenhum critério especial. E os outros, às vezes, até esperam pela minha disponibilidade. Em 60 anos já fiz de tudo e muito, ao ponto de a memória já não saber bem
VP Há algum estilo teatral que goste mais?
RdC Eu gosto de tudo! Gosto é do palco e de representar, não é de escolher papéis. A minha função é de dramático, é de cómico, é de farsa, é de revista, é do que for.
VP Há pouco referiu que também já obteve sucesso com uma plateia quase nula
Como foi isso?
RdC Já representei uma vez, em Santa Maria da Feira, para duas pessoas. Em Portugal tenta-se arranjar sempre umas borlas, as pessoas gostam de ir ao Teatro gratuitamente, não gostam de pagar. Acham que nós não ganhamos nem vivemos. Às vezes é preciso pensar que ninguém nos dá o bife no talho, pois não? E nós comemos o bife. Por isso as pessoas que vivem nesta e desta arte precisam de sobreviver, ter os seus ordenados, daí serem profissionais escolhem e fazem dessa a sua profissão. De maneira geral há o culto da borla. O Teatro deve ser económico, mas não de graça, senão o espírito crítico vai-se ao ar. As pessoas como não pagam depois têm vergonha de criticar, de dizer que não gostaram.
VP Porquê esta peça para celebrar os seus 60 anos como actor, dos melhores que Portugal tem?
RdC Precisamente por ter sido escrita pelo meu genro e porque foi oferecida ao Teatro Experimental do Porto (TEP), que aceitou a peça. Como fui Director do mesmo, quiseram que eu entrasse. A minha relação com o TEP foi óptima e assim continua, daí serem muito meus amigos. Sou sócio honorário do Círculo de Cultura Teatral do TEP. Era assim que se chamava e que devia chamar-se sempre, porque o Círculo de Cultura Teatral era muito importante, fundado por António Pedro (não é o actor), que trabalhou com Fernando Peça na Rádio de Londres.
Entrevista e Texto de
ANDRÉ RUBIM RANGEL
arrangel@gmail.com