Criai em mim, ó Deus, um coração puro
Neste tempo da Quaresma, todos os baptizados são chamados a refazer com Cristo baptizado o seu programa baptismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Baptismo no Jordão, passando pela Transfiguração/Confirmação no Tabor, até à Cruz e à Glória da Ressurreição (Baptismo consumado!), escutando/anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as "obras" do Reino (Act 10, 37s); os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos baptizados, "preparam-se" intensamente para a Noite Pascal Baptismal, início e meta da vida cristã.
1.ª Leitura (Gn 2, 7-9; 3, 1-7): Abriram-se então os seus olhos e compreenderam que estavam despidos
O homem de todos os tempos e de todos os lugares, nós também, criado com um "beijo de Deus" - é assim que os rabinos interpretam a morte de Aarão e de Moisés "à boca de Deus" (Nm 33, 38; Dt 34, 5) -, cedeu à tentação, afastando-se do único Deus criador e aderindo aos "deuses deste mundo", aqui simbolizados na cobra, animal que anda rente ou por dentro da terra (= deusa-mãe), comungando da sua vitalidade, e tornando-se, por isso, em símbolo do culto da fertilidade, fecundidade e vitalidade em todo o Médio Oriente Antigo e ainda hoje no nosso mundo (vejam-se os painéis que identificam as farmácias). Está diante de nós o orgulho do homem de todos os tempos que quis chegar a Deus pelas suas próprias forças, rejeitando a ligação obediente a Deus. O contraponto do Evangelho de hoje.
Evangelho (Mt 4, 1-11): Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto
Baptizado com o Espírito Santo (Mt 3, 16-17), e declarado por Deus "o Filho meu", "o Dilecto" (corrijam-se todas as versões que, não tendo em conta o artigo grego, diluem "o Dilecto" - título preciso e precioso - num "predilecto" ou "amado" ou outras banalidades das traduções modernas), Jesus é conduzido pelo Espírito Santo para o deserto (Mt 4, 1), lugar teológico e não meramente geográfico - com muita água (Jo 3, 23) cumprindo Is 35, 6-7, 41, 18 e 43, 19-20, com árvores (canas) (Mt 11, 7; Lc 7, 24) e relva verde (Mc 6, 39) cumprindo Is 35, 1.7 e 41, 19 -, lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está "a céu aberto" com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Is 40, 3), de João Baptista (Mt 3, 1s), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mt 24, 26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a "obra" nova de Deus (Is 43, 19). Sendo um lugar provisório, aponta para a Terra Prometida e definitiva do repouso. O deserto é lugar de passagem. Sem pontos de referência nem marcos de sinalização. Se o rumo não estiver bem definido, o viandante corre o risco de se perder no deserto da vida e de nunca chegar à Vida verdadeira.
Por 40 dias e 40 noites (40 é o tempo de uma vida, a vida toda) Jesus jejuou (Mt 4, 2), isto é, perscrutou a "obra" nova de Deus na história do seu povo, que o mesmo é dizer, saboreou as Escrituras, o outro alimento (Dt 8, 3; Mt 4, 4; cf. Jo 4, 32.34-35: notável releitura em que aos olhos atónitos dos discípulos saltam as estações do ano!), e meditou, sempre a partir das Escrituras, na sua missão filial baptismal. E é na sua condição de baptizado, isto é, de Filho de Deus, que ele é tentado. De facto, toda a tentação - a de Cristo como a nossa - começa sempre da mesma maneira: "se és o Filho de Deus...". Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Mt 27, 39-44). Portanto, sempre. Do Baptismo até à Morte, a tentação visa afastar-nos de Deus e da sua "obra", e pôr-nos ao serviço do "deus deste mundo" (2 Cor 4, 4; cf. Jo 12, 31). Veja-se a última "oferta" do "Tentador" do Evangelho de hoje: "todos os reinos deste mundo" em troca do afastamento de Deus (Mt 4, 8-9). E a resposta decidida de Jesus: "Vai-te, Satanás"! (Mt 4, 10). Baptizado, tentado na sua condição de Baptizado, e Vitorioso na tentação, Jesus passa de imediato à execução do seu programa filial baptismal: anunciar o Evangelho de Deus e fazer a sua "obra" (Mt 4, 12s). Como ele também nós.
2.ª Leitura (5, 12-19): O dom gratuito leva à justificação
Pecadores, todos nos podemos ver em Adão como em um espelho. Mas agora é tempo de vermos a nossa vida à luz de Cristo, com Cristo e em Cristo. Fixamente, para não nos perdermos na "caminhada". Onde abundou o pecado, superabundou a graça.