C. F.
1. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) tem vindo a divulgar através de correio electrónico enviado para os diversos órgão, um conjunto de decisões das quais a comunicação social ora se faz eco, ora não faz. Geralmente os jornais são mais "cumpridores" sobre este ponto concreto de informação; as rádios esquecem e as televisões (que são os media sobre os quais recaem proporcionalmente mais queixas e mais graves, apenas reflectem as tomadas de posição daquele organismo regulador quando a isso são obrigadas e sempre pela forma mais restritiva e menos esclarecedora: textos que correm rapidamente pelas pantalhas, acompanhados de uma leitura rápida e mal alinhavada, sintoma da vergonha que não querem ter.
A tarefa da AACS é uma tarefa ingrata, sobretudo porque não possui qualquer poder executivo: recebe queixas, denuncia, recomenda. Mas a fica sempre a dúvida: as coimas são efectivamente pagas, ou são apenas nominais? As recomendações são seguidas, ou tornam-se letra morta? Há de facto uma eficácia prática de um controlo democrático e isento, ou jogam-se também interesses? Não acontece que as decisões são esquecidas ao sabor dos interesses dor próprios meios, a quem fica mais barato pagar a coima em favor do oportunismo da transgressão?
2. Sendo, pois a AACS uma entidade cuja acção é necessária no panorama das ambições incopntidas da comunicação social, não se pode nem deve deixar de lamentar, sobretudo em função da oportunidade e da eficácia, a lentidão com que as decisões são tomadas. Sirvam de exemplo estas referências mais recentes:
Apreciada uma queixa contra a TVI, alegando violação do n.º 2 do Artigo 21º da Lei da Televisão, na transmissão de um spot promocional do programa "Sexo, vídeo e C.ia", em 2.02.03, queixa entrada neste órgão em 4.02.03, a Alta Autoridade para a Comunicação Social, considerando ser o spot em causa uma sucessão de imagens carregadamente eróticas, decerto para muitos chocantes pela sua obscenidade; considerando que a promoção, difundida embora em horário subsequente às 22 horas, não foi precedida de advertência expressa sequer acompanhada da difusão permanente de um identificativo apropriado, deliberou declarar procedente a queixa, recomendar à TVI o escrupuloso cumprimento do legalmente disposto para a protecção das crianças e adolescentes (evitando emissões susceptíveis de influir de modo negativo na formação da sua personalidade) bem como de outros públicos mais vulneráveis; e instaurar o legalmente devido processo contra-ordenacional. Esta decisão foi tomada em 18 de Junho de 2003. Quer dizer, mais de quatro meses depois de apresentada a queixa. Entretanto já a estação em causa repetiu indefinidamente a mesma atitude que a caracteriza, de desrespeito pela dignidade das pessoas e da função social que desempenha.
Já anteriormente a mesma entidade deliberara aplicar à TVI uma coima no valor de 9.975 por não ter sido observado o n.º 2 do artigo 21º, da Lei nº31-A/98, de 14 de Julho, na transmissão da minisérie "A Tribo" no dia 1 de Janeiro de 2001. O artigo referido da chamada "Lei da Televisão" estabelece a obrigatoriedade de advertência permanente aos espectadores em casos de imagens chocantes, bem como a obrigatoriedade da exibição dessas obras se verificar apenas depois das 22h. Esta decisão foi tomada em 5 de Junho de 2003, mais de seis meses depois da transgressão verificada.
Todas as entidades são úteis quando tomam as decisões que lhes competem em tempo útil. Os atrasos, por muito que sejam frequentes nos organismos oficiais (e também em muitos privados, convenhamos) tornam não raro inúteis as atitudes tomadas, porque o tempo fomenta o esquecimento e o esquecimento engendra novas transgressões.
Ocorre citar aqui as palavras sábias, como tantas outras, do P. António Vieira, que no meio da seriedade profunda das suas análises, bíblicas, filosóficas e teológicas, as mais das vezes através de uma lógica que se funda na interpretação analógica dos símbolos, e que portanto não é de comprovação mas de aplicação, não se coibia de inserir a aplicação dos princípios profundos à superficialidade do quotidiano. Veja-se como pregava na capela real ao rei e aos membros da sua governação:
"A omissão é o pecado que com maior facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece; e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo; e pecado que não é má obra e algumas vezes pode ser boa, ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em esse pecado". (Que desculpem as modernas mentes, ou pós-modernas, que se fale aqui em pecado, que é estranho e espúrio conceito nos dias que correm; mas o jesuíta seiscentista tinha mais razão para assim nomear tal atitude do que os modernos próceres em supor que o conceito está ultrapassado).
E continua o nosso orador ao rei e à governação: "Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros é dos pecados do tempo. Porque fizeram no mês que vem o que se devia fazer no passado; porque fizeram amanhã o que se devia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se devia fazer agora; porque fizeram logo o que haviam de fazer já. Tão delicadas como isso devem ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos, não anda em bom estado; a fazenda pode-se restituir; a fama, ainda que mal, também se restitui; o tempo não tem restituição alguma".
Ora aí está como com alguns advérbios de tempo o mestre de seiscentos faz um retrato perfeito dos tempos que correm hoje: todos se inquietam pelo acrescento da fortuna própria (ou pela destruição da alheia); todos vivem da agitação da fama e dos bons nomes, coisa que enche páginas e pantalhas; e todos se esquecem das omissões dos tempos. O que bem se traduz na portuguesa frase de qualquer bom funcionário ou tecnocrata: "isto não é para se fazer, mas para se ir fazendo". Este é o gerúndio perifrástico mais português de Portugal.