O Caminho
"São quatro os principais obstáculos que nos separam de uma forma de civilização que valha algo: a nossa falsa concepção de grandeza, a degradação do sentido de justiça, a nossa idolatria do dinheiro e a ausência, em nós, de inspiração religiosa": palavras rabiscadas por Simone Weil, em Londres, em 1943, num pequeno caderno onde apontava ideias aparentemente desconexas mas que continuam a revelar-se, meio século depois, da maior actualidade. Numa cidade em parte destruída pelas bombas alemãs, definitivamente ferida no corpo e na alma, esta singular figura de pensadora/mística/pessoa de acção continuava a roubar horas ao sono para - literalmente - conceber pensamentos e linhas de orientação que pudessem assegurar à Europa do após-guerra as bases de uma civilização digna do homem.
Foi assim que ela escreveu, naquele atormentado período, a poucos meses da sua morte, centenas de páginas de um inacabado "Prelúdio a uma declaração dos deveres para com a criatura humana" onde se pode ler: "A nossa concepção da grandeza é a tara mais grave e a de que menos consciência temos como tal... A nossa concepção de grandeza é a mesma que tem inspirado Hitler ao longo de toda a sua vida" . E noutra passagem anterior do mesmo escrito, Simone Weil tinha já anotado: "O único castigo capaz de punir Hitler e de afastar do seu exemplo os rapazinhos sedentos de grandeza dos tempos futuros é uma transformação total do sentido de grandeza... E para contribuir para esta transformação, é preciso tê-la realizado em si mesmo."
Não é frequente que um Papa comece um discurso com a longa citação de um pensador moderno não-católico (e até mesmo sem qualquer ligação formal com uma Igreja cristã). Provavelmente nunca tal tinha acontecido, mas foi o que fez João Paulo II a 22 de Dezembro, dirigindo-se aos Cardeais e outros membros da Cúria Romana, na tradicional apresentação das Boas Festas de Natal.
O autor citado foi Alfred North Whitehead ("Religion in Making"): "A vida de Cristo não é a demonstração de uma força omnipotente. A sua glória é para aqueles que são capazes de a compreender, não é para o mundo. O seu poder consiste no facto de Ele renunciar à força. Esta vida possui o poder decisivo do mais sublime ideal ético e é por isso que Cristo é o ponto que divide a história do mundo."
Património comum
Na perspectiva do Jubileu do Ano 2000 e tendo bem presentes os contrastes e contradições que atravessam de alto a baixo o planeta nesta fase histórica de desagregação/reconstrução, Karol Wojtyla retoma aqui, em toda a extensão e profundidade, a mensagem que tem sido a sua desde o primeiro dia da sua eleição para a sede de Pedro, aliás na sequência de Paulo de Tarso e de todos os discípulos do Crucificado: é Cristo - o Deus humanado, desarmado - o caminho do homem, da história, da civilização.
O horizonte de João Paulo II - das suas palavras e da sua acção - não se confina dentro dos limites da Igreja visível, mas estende-se a toda a humanidade, com todos os povos, religiões e culturas. Nada do que é humano é alheio às preocupações deste Papa, como não o deveria ser a todo e qualquer discípulo de Cristo ou pastor da Igreja.
Esta dimensão universal - verdadeiramente católica - está bem presente na maneira como o Grande Jubileu do ano 2000 foi proposto: como uma etapa significativa na história de toda a humanidade em fase de progressiva globalização e com crescente necessidade de assumir como património comum todos os bens da terra e do espírito. A insistência na questão da dívida externa e solucionar também na perspectiva da justiça e da paz a que o Jubileu faz apelo, é apenas um aspecto desta atitude de fundo.
Em 1996 o Conselho Pontifício "Cor Unum" publicou um importante documento (passado quase despercebido) sobre a fome no mundo: "Um desafio para todos: o desenvolvimento solidário". Dentro de dias, em vésperas da visita do Papa a Cuba, o Conselho Pontifício Justiça e Paz deverá publicar um outro texto que poderá dar muito que falar. O tema é a questão da propriedade. A Igreja começa a reconhecer, ao mais alto nível, que a defesa do direito de propriedade não teve suficientemente em conta grande maioria daqueles que deste direito estavam expoliados por uma posse exclusiva da parte de uma minoria privilegiada.
E é aqui que se situa a questão que Simone Weil sublinhava com tanta insistência: num mundo ávido de dinheiro e de grandezas desmedidas, com todos os atropelos à equidade e à justiça do Criador, só uma profunda conversão num sentido de simplicidade emodéstia de vida, de serviço responsável ao bem-comum, de respeito e partilha dos bens criados - pode inverter os dados do problema nesta fase crítica da história. Uma conversão que irmana cristãos e não-cristãos, crentes e não-crentes. Cristo é, realmente, o ponto que divide a história do mundo. Aceitar, com todas as consequências, a Sua força desarmada e a Sua glória de Crucificado é o grande desafio. Mesmo, e antes de mais, dentro da Igreja.
PACHECO GONÇALVES