[ Especial ]



    OPINIÃO

    O ensino do religioso, visto da França republicana e laica


    Que eu tenha visto não teve qualquer repercussão entre nós a relação que Régis Debray, cuja ascendência política e ideológica é conhecida, entregou ao antigo Ministro da Educação (socialista) Jack Long, sobre o ensino religioso nas escolas públicas francesas. Também não vi qualquer repercussão sobre o já não muito recente encontro, depois publicado, sobre esta matéria, de alguns pensadores laicos tais como Trías, Derrida, Vattimo e Habermas. De resto Habermas voltou recentemente ao assunto num notável discurso pronunciado em Frankfurt, ao receber o prémio dos livreiros alemães.
    Não admira. Como dizia o saudoso D. António Ferreira Gomes a propósito de outros factos, em Portugal soletra-se francês, e ainda por cima em calão.
    Por carta de 3 de Dezembro de 2001, o precedente Ministro da Educação Nacionakl Jack Lang, confiou a Régis Debray a missão de "reexaminar o lugar reservado ao ensino do "facto religioso" no quadro laico e republicano próprio à Escola em França.
    A relação sobre a questão foi entregue alguns meses mais tarde e um comentário, feito pelo próprio Debray pode ser lido no número de Études deste mês.
    A relação de Debray, que não podemos apresentar em pormenor constata que esta questão é comum ao privado e ao público (o ensino privado em França é pago pelo Estado como o público, aí também numa lei de F. Mitterrand, socialista) afirmando que "o privado e o público estão confrontados com a mesma amnésia e a s mesmas carências".
    Outra constatação é a de que o religioso aparece como "transversal" em numerosos campos de estudo e de actividade humana. Tomá-lo em consideração não pode ser senão benéfico para "desarmar os diversos integrismos" que hoje se manifestam.
    Impõe-se a necessidade de ultrapassar "um certo cientismo, doença infantil da ciência, tal como um certo laicismo arrogante, que foi a doença infantil do livre exame.
    Chegou o tempo da "passagem duma laicidade da incompetência a uma laicidade da inteligência". Para o fazer é importante distinguir o religioso "como objecto de cultura", em razão do seu contributo à instituição simbólica da humanidade e o religioso como objecto de culto que nasce do trabalho das próprias instituições religiosas.
    Para desbloquear situações plasmadas e avançar no trabalho de compreensão do religioso em nosso tempo, importa sobretudo precisar os conteúdos e os contornos daquilo que entendemos por facto religioso. Para os crentes não se trata de se mover numa esfera essencialista postulando a religião como um facto de natureza originando uma espécie de homo religiosus, inamovível segundo os tempos e os espaços. Ao contrário, o horizonte actual consiste em descobrir o homem nos caminhos das suas diversas relações e pertenças culturais de que a religião é parte integrante. É necessário partir do homem nas suas relações com o que julga ser o Absoluto.
    Na França laica e republicana que herdou a tradição dum combate conhecido contra as instituições eclesiásticas de ensino, a relação de Jack Lang constitui um acontecimento importante. O texto de Debray, antigo conselheiro de Allende, na revista Études, subordinado ao tema "O que é um facto religioso", deveria ser lido por todos aqueles que numa época de diálogo inter-religioso e de vazio cultural, pensam que o ensino da religião na escola não deveria ser apenas um fenómeno confessional, mas deveria ser também um fenómeno transversal mais abrangente, de forte tendência religiosa, lá onde, por caminhos diversos, o homem se encontra com o Absoluto.

    Arnaldo de Pinho