Gonçalves Moreira
A modernidade faz gala do seu ateísmo, ou da sua total indiferença perante a ideia de Deus. No entanto, e ainda que inconscientemente, cria os seus ídolos, aos quais submete inteiramente toda a sua vida. Na expressão de Hinkelammert, o mito fundante da modernidade é "a harmonia inerente entre o progresso técnico e o progresso da humanidade, mediatizada por um marco institucional como o mercado (para o capitalismo) ou o planeamento centralizado (no socialismo)". A essência da modernidade, no dizer do mesmo autor, é "a ilusão transcendental dos progressos infinitos".
Em tempos, nos conhecidos "Encontros de Genebra", chamava-se a atenção para a diferença entre o progresso técnico e o progresso moral. Enquanto o primeiro era espectacular na sua evolução rápida, o segundo era inexistente. Como a moral agora é apenas a produtividade, deixou de ter sentido aquela distinção.
Com a secularização, as esperanças não acabaram, apenas mudaram de sentido. Para a religião, a esperança está no transcendente. Para a modernidade, a mesma esperança tem por objecto a felicidade neste mundo, pela posse da maior abundância possível de bens materiais. A consciência da insatisfação do presente é a mesma. O que mudou foi o sentido da utopia. Diz José Comblin: "A modernidade anuncia um evangelho porque anuncia um mundo novo que será a salvação da humanidade". O fundamento da esperança religiosa é a palavra de Deus, sobretudo a palavra que é Jesus Cristo. O fundamento da utopia da modernidade é o progresso científico e técnico, cheio de promessas de bem estar para a humanidade. O primeiro baseia-se na fé, o segundo baseia-se na experiência de cada um, que pode experimentar já as virtualidades do progresso.
Por seu lado, Júlio de Santa Ana afirma: "É o desafio da idolatria da existência de falsos deuses que dominam a vida de muitos homens e mulheres num mundo que pretende ser altamente secularizado". E ainda: "Com a sacralização do mercado, não há outra moral fora da moral do mercado e na luta que caracteriza o mercado livre existem aqueles que ganham e aqueles que perdem, os que sacrificam ao ídolo e os que são sacrificados. O ídolo não se satisfaz sem esta violência".
Temos então a economia a dirigir e orientar todo esse progresso, que promete a felicidade ao homem. Para uns, foi a economia planificada, que, no entanto, faliu, como está à vista de toda a gente. Para outros, é a economia de mercado, que se apresenta triunfante, na medida da falência da primeira. Em face deste triunfo, que enche de riqueza as sociedades que adoptaram essa forma de economia, cessam todas as outras considerações de ordem moral ou ética. Aqui, as únicas leis são a eficiência e a produtividade. Já não há verdadeiras utopias, porque todos os desejos humanos serão, mais cedo ou mais tarde, satisfeitos pelo acelerado progresso técnico.
Falou-se, muitas vezes, no aspecto de verdadeira religião que assumiu o comunismo. Também com este capitalismo acontece o mesmo. E ambos, como as religiões primitivas, têm sacrifícios humanos. O comunismo sacrificou milhões, nas suas prisões e nos seus Goulags. Este capitalismo sacrifica os mais fracos, que são os dois terços da humanidade que estão à margem dos benefícios da modernidade. O mercado é também um ídolo todo poderoso, considerado capaz de realizar todos os sonhos do homem. Esta "religião económica" macaqueia o evangelho cristão, como diz Hugo Assmann, num livro a que deu o título de "A Idolatria do Mercado", onde afirma: "O evangelho da caridade ficou totalmente confiado à paixão do interesse próprio. Deriva daí a possibilidade de proclamar, da maneira mais enfática, uma mística do serviço ao próximo incorporada nas piores formas de domínio e exploração do próximo".