C.F.
João Maia (1923-1999), sacerdote jesuíta recentemente falecido, era uma daquelas pessoas que a gente só conhece pelo que dele lê e/ou ouve. Recordo sempre várias crónicas que lhe ouvia na Rádio, quando calhava (a rádio tem essa característica própria, entre todos os media: apenas se ouve quando calha, sem que isso seja virtude ou defeito), palavras que fluíam num português a um temo leve e aristocrático, com um sabor a um tempo clássico e desbravador de novas expressividades na língua portuguesa, ditas por uma daqueles vozes ancestrais de tom gradiloquente, mas que pronunciavam as palavras de forma correcta e não se enganavam nem na pronúncia nem na prosódia, como agora sucede com inusitada frequência nos profissionais da função. Chamavam-se as crónicas Textos e Pretextos, e verifico agora que estão publicadas com o mesmo título.
João Maia assinava crítica literária, sobretudo de poesia, na revista Brotéria - cultura e informação, "publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902", cujo conselho de Redacção integrava até à data da morte inevitável, que lhe sobreveio no dealbar deste ano, às portas do 3º milénio, que bem aspiraria conhecer. Mas a vida é breve e a hora da sua conclusão, nesta etapa passageira, é sempre misteriosa, ainda que (ou precisamente porque) explicável por todas as disfunções corporais a que somos atreitos sem se saber como.
Nunca conheci João Maia de outra forma que não fosse pelas palavras escritas, fossem elas lidas ou ditas. Se cruzasse com ele na rua não o reconheceria. O que quer dizer que há formas de conhecimento que não precisam nem dos olhos nem da presença física: há outras presenças que são mais persistentes. Actualmente conhecem-se e visualizam-se as pessoas pelas imagens, sem que se lhes desbrave a alma; mas há formas de conhecer que desbravam a alma sem precisarem das imagens.
Folheando a Brotéria das últimas décadas sentimos que se perfilava (ao lado de nomes tão notáveis como Lúcio Craveiro da Silva ou Mário Martins) a sua palavra crítica, geralmente sobre poesia, onde se misturava, em exigente e requintada culinária, a divagação com a ironia, a fina análise rigorosa do texto com alargamentos de sentidos e amplificações, aplicações temáticas e sugestões trans-textuais, e a criação pessoal com a crítica da criação alheia. Raro era o número mensal (e a Brotéria tem, entre todas as revistas portuguesas de pensamento, esse mérito jesuítico de nunca falhar na hora determinada) em que não aparecesse a breve crónica (raramente a longa elucubração) sobre um autor, um livro, ou vários de uns e outros, sobre tendências poéticas globais, novidades e classicidades: tudo sempre em luminosas palavras de rara expressividade com finura de senso e agudeza de incidências. Não raro se intitulavam "Crónica de Poesia", mas as linhas gerais do pensamento moderno travejavam sempre a observação que fazia das incidências vitais.
Frequentemente são poetas os que escrevem sobre poetas: quantos foram os que, usando como profissão ou como devoção a crítica literária, se tornaram poetas (ou já eram, visto que já o mestre latino decretava por experiência que "o poeta nasce"): Nemésio, Mourão Ferreira, Jorge de Sena, Maria de Lourdes Belchior. Os grandes críticos literários tornam-se poetas quando quiserem. Por isso, nada de estranhar que João Maia se afirmasse também como poeta, aliás desde cedo; com obras como Abriu-se a Noite (1954), com que ganhou o Prémio Antero de Quental), Verbo do Verbo (1957), Écloga Impossível (1960), Poemas Helénicos. Um Halo de solidão (1963), Areia e silêncio (1972). Escreveu ainda livros de contos e apólogos: O Mago que lia a sina (1960), O Livro dos animais (1980), Patusco (Autobiografia de um burrinho ribatejano) (1984), onde se pode detectar a influência temática ou tópica de Platero e yo, do poeta andaluz prémio Nobel Juan Ramón Jiménez.
A obra poética de João Maia mereceu a atenção de críticos como Jorge de Sena e Vitorino Nemésio. Este último, em Conhecimento de Poesia, transcrevendo o Prefácio que escreveu para Verbo do Verbo, resuma: "O seu empenho étnico consiste sobretudo em buscar uma relação de universalidade e de parentesco entre os verdadeiros poetas verbalmente prisioneiros da estreiteza da "pequena casa lusitana" e os supremos criadores de larga voga". Citando "do limiar do poema/ olha o poeta as palavras", resumia assim a atitude poética de João Maia: "A razão, o conhecimento pertencem ao plano da existência; a realidade está no ser de Deus e na divino ignorância do poeta". Por sua vez, Jorge de Sena escreve sobre a sua poesia que "atinge a original expressão de uma melancolia serena e visionária, elegantemente contida na sua emoção e agudamente ciente do temporal e do transitório". Tais julgamentos, feitos sobre obras antigas, não perdem actualidade para as mais modernas.
Para que possamos fazer uma ideia do distanciamento autor, enquanto crítico de literatura e e perscritador das novidades que se vão perfilando, e ao mesmo tempo do rigor das palavras em que vertia a análise textual, apreciemos o seguinte passo: Podemos talvez dizer que a poesia moderna portuguesa, a mais válida, e aquela que se estende para cá de Fernando Pessoa cobrou uma consciência aguda do lidar com as palavras; e, em vez de uma comunicação directa do que se convencionou chamar mensagem, ausculta antes o que as palavras guardam em si enquanto dormem o sono no dicionário! É faina arriscada, tendo em vista que o leitor comum quer, por via de regra, que lhe dêem as emoções que ele já tem e conhece e está sempre pronto e reviver, sem pesquisa de coisa nova. Assim, poetas houve que, mais que poemas, fizeram homilias, pregações de vária ordem, muito achadas na freguesia de João de Lemos, cheia de flores de lés a lés. Mais limitada decerto certa poesia para cá dos modernismos, lida com as palavras sem as carregar de imagens batidas. Os poemas surgem num rumor de palavras que antes nunca se tinham visto juntas e os leitores botas-de-elástico rangem o dente e rasgam a veste em desagravo de Boileau e de António Feliciano de Castilho. Esta poesia, de vigilante respeito pela palavra corre o risco de se esgotar facilmente, já que a variedade vem sempre do homem poeta e não do simples dicionário, poço ou cemitério como alguns lhe chamam... A Poesia, firmada no rosto das palavras assépticas à emoção deflagrada, pode e deve guardar o ritmo, a boa vizinhança das estrofes clássicas".
Isto foi escrito (Brotéria, Março de 19991) como forma de crítica a um livro de Mário Garcia (O Rosto das palavras), mas, mais que um simples comentário a uma obra, constitui uma notabilíssima resenha das características mais salientes da poesia portuguesa moderna: predominância do trabalho com as palavras por parte dos poetas, os quais, como diria o Pessoa-Caeiro, "trabalham nos seus versos como um carpinteiro nas tábuas" - raro é o poeta hodierno que não repita a cada passo o lexema palavra ou palavras, procurando dar sentido à conhecida expressão de Almada: nós somos do tempo de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas; a ausência de explícita mensagem , pelo menos a directa e de imediata compreensão, ou mesmo a sua liminar rejeição, por vezes mesmo com agressividade; a natural rejeição do leitor e esse tipo de re-criação poética; e a observação mais terrível de todas, porque a mais lúcida e verdadeira: que essa poesia corre o risco de se esgotar facilmente, porque lhe faltam muitas vezes (quase sempre?) duas componentes essenciais: o pensamento e a emoção. Ou, se se quiser, a razão e o sentimento.
O percurso da obra crítica de João Maia daria azo a múltiplos encontros deste tipo com a fina sensibilidade à poesia, na qual via uma manifestação e uma procura: do sagrado, do profundo sentido do homem, dos mistérios do mundo e da vida, e no fundo também de uma forma nova de revelação: a Revelação divina foi feita pela poesia e toda a poesia é uma forma de revelação, de mundos e de almas. Assim a entendia e a procurava desvendar João Maia.
Eis como me é possível recordar um homem que não conheci, a não ser pela palavra. Com a imagem ausente, o único rosto dele que se manifesta é o da ausência. Mas frequentemente a ausência se faz presença.