Vitor Serrão*
O grande interesse artístico que encerra a Sacristia da Sé do Porto atesta-se não só pela manifesta inovação do revestimento da pintura mural barroca da autoria de mestre Niccoló Nasoni e pela qualidade do arcaz com espaldares finamente entalhados, mas também pelo ciclo de pinturas parietais, em boa hora restaurados no âmbito de um processo de intervenção dirigida pelo IPCR.
Estas pinturas documentam pelo menos duas campanhas distintas de intervenção artística, pelo que têm um interesse acrescido para a História da Arte, que é o facto de documentarem bem, à luz do estudos das intervenções sofridas, os processos de reutilização e as alterações sucessivas e mostrarem por essa via o modo como as razões de culto e as alterações de gosto interferem tanto na vida física das obras de arte.
O ciclo de pinturas parietais da Sacristia foi ordenado pelo Cabido da Sé (que estava em período de sede vacante desde 1717), no âmbito das grandes obras que custeara na igreja, desde o retábulo joanino (da autoria de Miguel Francisco da Silva e Luís Pereira da Costa, 1727-1729) às decorações fresquistas que o pintor, arquitecto e cenógrafo N. Nasoni fizera na capela-mor (1725-1731). No caso das paredes da Sacristia, o Cabido reutilizou as tábuas maneiristas (de "velha e primorosa pintura", como se diz num texto da época) que, estando muito estragadas pela humidade, tinham sido aproveitadas de uma campanha do tempo de D. Gonçalo de Morais no início do século XVII e que haviam sido apeadas em 1726 da decoração da capela-mor. O Cabido mandou recolocá-las como ornato da Sacristia e "renová-las" de modo a poderem ser reutilizadas em termos de culto.
Trata-se de oito quadros sobre o comprido, em madeira de carvalho, com belas molduras maneiristas de óvulos e diamantes, representando as cenas da Anunciação, Visitação, Adoração dos Pastores, Adoração dos Magos, Apresentação do Menino no Templo, Circuncisão, Regresso da Sagrada Família do Egipto e O Menino entre os Doutores. Obras de cerca de 1610, sequazes de gravuras maneiristas flamengas (de Cornelis Cort a Philippe Galle e Johannes Sadeler, entre outros), foram consideradas pelo saudoso iconólogo Prof. Flávio Gonçalves como sendo próximas do estilo da oficina do pintor portuense Francisco Correia. As tábuas tiveram que ser readaptadas à sua nova função no espaço da Sacristia que lhes foi tributado. Assim, para esse efeito sofreram um grande "restauro" pelo pintor italiano então estabelecido no Porto , Giovanni Pachini, que entre Abril e Setembro de 1727 recebeu 120.400 rs, em cinco pagas , "por conta da reforma dos quadros para a sanchristia". Tornou-se necessário, de seguida, a execução de mais duas pinturas de idênticas dimensões para preencher os dez espaços de molduração fingida definidos pela pintura murária de Nasoni, e desse trabalho se encarregou em Abril de 1734 um outro pintor italiano, o florentino Carlo Antonio Leoni, há pouco chegado à cidade, que pintou em tela as cenas das Bodas de Canaã e Casamento da Virgem, restauradas em 2000 pelo atelier Ocre a fim de integrarem a grandiosa exposição Cristo Fonte de Esperança organizada pelo Prof. Carlos Moreira Azevedo e pelo Dr. João Mário Soalheiro.
É interessante notar-se como a Sacristia da Sé do Porto empregou a arte de nada menos que três italianos então radicados na cidade atraídos pela riqueza crescente da cidade tripeira e pelo seu dinâmico mercado religioso e aristocrático: o florentino Carlo Antonio Leoni, o romano Giovanni Pachini e o toscano oriundo de Malta Niccoló Nasoni. Só este último, porém, atingiu verdadeira maestria no programa de pintura murária do tecto e paredes da sacristia, com uma decoração cenográfica onde desenvolve, como foi recentemente comprovada pela Dra Giuseppina Raggi, os seus conhecimentos de pintura de perspectiva solidamente aprendidos na Academia Clementina de Bolonha, no círculo de Stefano Orlandi e de outros artistas ligados à arquitectura ilusionística e à cenografia barroca. Aliás, não nos esqueçamos que Nasoni se destacou de seguida, sobretudo, na arte da arquitectura, onde assumiu (com António Pereira) destacada relevância na construção do novo figurino barroco da cidade, aberto a contribuições decorativas de sinal rococó.
Estas pinturas murais de Nasoni da Sacristia da Sé, restauradas pelo atelier Mural da História, vieram devolver ao pleno olhar dos visitantes a maestria pictórica do artista toscano e o seu esforço de actualização de modelos estéticos, que verdadeiramente não fora atingido pelos dois outros artistas transalpinos nas discretas intervenções realizadas na sacristia. É interessante notar como a pintura de Nasoni envolve em gorda molduragem fingida a própria estrutura dos quadros de Correia-Pachini, assim melhor incorporados no novo espírito cenográfico italianizante que se buscou imprimir ao espaço da Sacristia e que nos anos de 1730 não podia deixar verdadeiramente de ser considerado um dos mais modernos da cidade.
De facto, admirando-se agora o resultado geral das intervenções laboratoriais realizadas sob égide do IPCR, verifica-se que o nível do ciclo parietal se pautou pela mediania artística, embora se deva pensar que o seu efeito, após o "restauro" de Pachini, teria excedido as expectativas de um mercado ainda muito tradicionalista, habituado a pinturas de cavalete de menor nível (como as que o mesmo Giovanni Pachini executara no tecto da Casa do Cabido, anexa à Sé, em 1727, seguindo gravuras de Cesare Ripa, e que mereceram um destacado estudo iconográfico a Flávio Gonçalves).
O restauro recente removeu grosseiros repintes e devolveu às pinturas valores plásticos e cromáticos esmaecidos, permitido concluir que Pachini interveio profundamente nas tábuas que lhe foi dado "renovar", de que manteve tão-só o modelo compositivo original, alterando figuras, introduzindo fundos e trechos de arquitectura, etc. A intervenção permite atestar ainda que, da pintura maneirista original do início do século XVII, atribuída a Francisco Correia (um dos artistas do retábulo da Capela dos Alfaiates, e autor de tábuas do fim do século XVI em Valença, Azurara e Barcelos) pouco resta hoje que não tenha sido alterado pelo afã restauracionista de Giovanni Pachini - havendo mesmo uma pintura que foi alterada no seu tema (como a radiografia indica), passando a representar não a Apresentação da Virgem no Templo e sim a Apresentação do Menino no Templo, e outras que foram de todo refeitas , como é o caso do Regresso da Sagrada Família do Egipto, porventura a mais interessante do ciclo, onde Pachini manteve a estrutura central (inspirada num gravado maneirista de J. Sadeler segundo Maerten de Vos) mas refez personagens, planejamentos e fundos e introduziu mesmo o encantador trecho de dois jovens abraçados, à esquerda.
Devolvido ao espaço o seu requinte original, a Sacristia da Sé do Porto passa a constituir lugar de visita obrigatória para os visitantes da Cidade Património Mundial, como testemunho ímpar das correntes artísticas que se impunham então no Porto, em pleno reinado de D. João V, com destaque para a novidade da cenografia "ao bolonhês" introduzida por Nasoni.
* Prof. da Faculdade de Letras de Lisboa. Texto lido na cerimónia de inauguração por Carlos Azevedo. Agradecemos ao Prof. Vítor Serrão a amabilidade de permitir a publicação desta comunicação, que historia de forma rigorosa todo o processo de elaboração dos valores artísticos da sacristia da Sé).